quinta-feira, 19 de março de 2009

O dente da galinha


Atualmente tenho estado muito influenciado pelos pensamentos de Darwin. Não por acaso comemoramos este ano o seu bicentenário (1809-1882/2009) e os 150 anos de “Origem das Espécies”. Apesar de Darwin não ter construído no Rio de Janeiro os pontos mais quentes da sua teoria, é admirável o seu encanto pela exuberância das nossas matas e o seu indiscreto repúdio com a condição política do Estado Brasileiro até 1832, em plena escravocracia, ano em que esteve no Rio de por três meses. 

Fig. 1 - Bico de fóssil de pelicano com com projeções
semelhantes a dentes.
Me pergunto se no domínio dos escravocratas, o Capitão Fitz Roy, comandante do HMS Beagle, navio hidrográfico da marinha real britânica, no qual Darwin fez a sua viagem como naturalista convidado, sofreu alguma sanção do império brasileiro devido a sua passagem de exploração pela costa brasileira. Aqui, o capitão mapeou toda a costa litorânea com requinte que só os cartógrafos reais podiam fazer. Era o início do "nosso" complexo de vira-lata. Também me chamou a atenção na releitura do seu diário (Darwin, C., 1871), a ausência de notações sobre índios no Rio de Janeiro. É surpreendente que já em 1832 todos houvessem sido exterminados.

Políticas a parte, acredito que Darwin ficaria bem feliz com as novas descobertas científicas que tem sustentado cada vez mais a sua teoria. No caso específico do nosso tema, “o dente da galinha”, o campo é fértil. Vejamos um membro da extinta família Pelagornithidae, pertencente à Ordem dos Pelecaniformes, cujo membro foi descoberto no Peru, mais exatamente no deserto da região Ica (Figura 1). Trata-se de uma ave marinha fóssil, extinta a 10 milhões de anos. Nela é possível ver nitidamente os dentes, ou melhor, um crânio de 40cm cujo bico tem projeções ósseas semelhantes a dentes. 

Vamos nos situar melhor! É consenso entre os paleontólogos que as aves evoluíram de ancestrais dinossauros, particularmente do grupo dos Terópodes. Os Terópodes pertencem a Superordem Dinosauria que também agrega outros grupos de dinossauros como os Saurópodes, Anquilossauros, Estegossauros, Ceratopsídeos, Ornitópodes e Paquicefalossauros. De todos esses grupos, apenas os Terópodes e os Paquicefalossauros são bípedes, como são também as aves. Entretanto, só os Terópodes possuem fúrcula, um tipo de osso leve, cheio de ar, em forma de forquilha, que nada mais é do que a clavícula. Entretanto, estas são soldadas ao esterno. Para os apreciadores de carne de galinha, a fúrcula é conhecida como osso da sorte. Isto mesmo, tal qual os terópodes, as aves modernas herdaram filogeneticamente este caractere, da mesma forma que também herdaram um comportamento típico e único dos terópodes que é o cuidado com os filhotes e a capacidade de ensinar métodos de caça e sobrevivência. Cabe lembrar que evidências fósseis mostraram que uma espécie de terópode, o Velociraptor mongoliensis, possuía penas. No mais, todos os dinossauros botavam ovos. Pois bem, essas maravilhosas descobertas aproximaram ainda mais as aves dos dinossauros como um grupo parafilético, colocando-as como seus verdadeiros descendentes. É importante dizer que os primeiros fósseis de dinossauros conhecidos datam de 235 milhões de anos e pertencem ao gênero Eoraptor. Segundo os paleontólogos, o eoraptor se parece com o antepassado comum de todos os dinossauros, sugerindo que os primeiros dinossauros foram predadores pequenos, provavelmente bípedes. Assim, podemos suspeitar que os dinossauros e as aves, no mínimo, tiveram um ancestral comum a partir do eoraptores, e o que é melhor, eles tinham dentes. Segundo a literatura especializada, os dentes das aves desapareceram há 70-80 milhões de anos. Poderíamos fazer uma pergunta nesse ponto: Se novas espécies derivam de outras, será que teríamos um registro molecular, semelhante aos registros fósseis, que comprovariam tais evidências? Sim! Foi demonstrado que genes responsáveis pela formação de dentes em répteis e mamíferos também estão presentes nas aves (veja o link).

Na epiderme de embriões de aves aparece, durante o desenvolvimento da epitélio mandibular, um espessamento tecidual semelhante ao que ocorre em camundongos durante a formação da lâmina dental (Chen, Y., 2000). Entretanto, esta estrutura regride e a invaginação (dobra do tecido) associada com a formação dos dentes não ocorre. Por outro lado, se for feito um enxerto com tecido embrionário de camundongo (ectomesênquima oral) no mesmo epitélio mandibular de aves descrito anteriormente, o tecido adquire a capacidade de produzir dentes (Kollar & Fisher, 1980). Isto sugere que existe um programa genético dormente que confere à epiderme mandibular das aves a capacidade latente de desenvolver dentes, mas que foi reprimido por seleção natural durante o processo evolutivo. Em 2006, Harris e colaboradores mostraram que os mesmos genes responsáveis pelo desenvolvimento dos dentes em vertebrados (shh, fgf8, bmp4 e ptix2) estão presentes em embriões de galinha. Ele acredita, conforme trabalhos realizados com embriões selvagens de galinha e em embriões mutantes (ta2), que o desaparecimento dos dentes nas aves foi devido a perda da justaposição direta entre os dois tecidos formadores de dentes na cavidade oral da aves, ou seja, o ectoderma e o mesênquima oral dos embriões. Estes deveriam estar alinhados durante o desenvolvimento embrionário, permitindo que os genes sinalizadores fgf8, bmp4 e shh, ativassem o mesênquima da cavidade oral e o capacitasse novamente a formar dentes, como ocorre nos répteis. Mas isso não é mais possível devido ao desalinhamento tecidual observado.

Colocando claramente. A presença de genes de dentes nas aves, e sua reativação em laboratório, é forte evidência, junto com achados fósseis e demais descobertas, de que os ancestrais das aves (a galinha do título) já tiveram dentes e os perderam ao longo do seu processo evolutivo. Assim, tirando as explicações morfológicas e moleculares que eventualmente tornam o texto difícil de ser entendido, não faria sentido a presença de genes de dentes nas aves se estes não tivessem sido utilizados em algum momento durante a transição evolutiva dos répteis para as aves. Isto não é fantástico?
Abraços e até a próxima.

3 comentários:

  1. Miro, Você já leu o livro de Francis Collins, diretor do projeto Genoma? em especial a vertente de complementariedade entre evolucionismo e criacionismo?

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  2. Oi Joca,
    Ainda não lí. Entretanto pela relevância do projeto que ele dirigiu acredito que deve se tratar de um grande livro. Vou procurar nas livrarias. Grande abraço e obrigado pela dica.

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  3. Muito interessante essa pesquisa!
    Parabéns pelo texto.

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