domingo, 26 de abril de 2009

Voltando ao tema "o que é vida?"


Desde que montei esse blog nunca fiquei tanto tempo sem postar. Entretanto o motivo é compreensível já que perder doze dias pensando no que seja a vida significa tentar sintetizar o que muitos vem pensando há décadas. Bom, a leitura deste texto não está completamente condicionada a leitura da postagem anterior, mas para quem leu, pode ter tido a impressão de que estava tentando acentuar divergências entre Maturana e Darwin. Não se tratava disso, até porque o meu interesse nas teorias de Maturana é pontual. Por outro lado, não podemos desejar que a biologia seja reduzida a um único pensamento e que todas as respostas se encerrem na questão da seleção natural pois nem mesmo Darwin considerava essa última como a única explicação para a diversidade biológica. Também acho importante grifar que falar de Maturana implica em algo que pode ser complementar a Darwin pois "origem das espécies" é diferente do que seja "o que é vida". Então, estamos falando de dois domínios diferentes. Um que obrigatoriamente se situa no fluxo do tempo e portanto é dependente dele. Ou seja, um tempo filogenético no qual a adaptação deriva de um processo. O outro que, da forma como entendo, é independente do tempo pois de acordo com Maturana, organizações vivas não se modificam ou se adaptam, apenas se conservam tal como são, apesar de seus contextos ontogenéticos (nascimento e morte de um organismos) e filogenéticos (evolução). Então, Maturana estaria preocupado com o que é a vida independente do seu ciclo, e esse parece ser um dos seus pontos de partida: a vida é.

Se você está achando que eu estou dizendo que a vida é atemporal, é exatamente isso. Se pensarmos como Maturana só poderemos chegar a essa conclusão. Neste contexto, estar vivo independe do tempo. Não tem nada a ver com relatividade ou coisa parecida. Uma tartaruga de 200 anos está tão viva quanto uma de 200 segundos pois a vida para Maturana é uma organização fechada. Se for mudada ela se desintegra e morre. Para continuarmos esse pensamento seria interessante uma breve contextualização histórica, mas não sem antes dizer que o componente atemporal da vida que quero discutir aqui só faz sentido quando iluminado pelo pensamento de Maturana e Varela.

Em 1920, o Biólogo austríaco Ludwing von Bertalanffy estava incomodado com o enfoque mecanicista, dado pela física, atribuído às teorias e pesquisas biológicas. Ele achava que ao adotar o enfoque mecanicista desprezava-se na biologia exatamente o que era essencial ao fenômeno da vida: a organização, ou seja, “interações fortes e não triviais entre as partes que a compõem” (Bertalanffy, 1968). Bertalanffy ao elaborar a “teoria geral dos sistemas” em 1968, distinguiu duas vertentes teóricas das “ciências dos sistemas”. Uma mecanicista e outra organicista. A organicista estava relacionada com a teoria geral dos sistemas (proposta por ele mesmo) e a mecanicista com a cibernética, do matemático Americano Norbert Wiener. Assim, a Teoria Cibernética seria mecanicista por sua associação com as máquinas, ou sistemas artificiais, e a Teoria Geral dos Sistemas seria organicista por sua associação com os organismos vivos ou sistemas naturais, quer fossem biológicos ou sociais.

Nessa época, Bertalanffy não dispunha de um conceito sobre organização dos seres vivos, mas apenas indicava algumas características comuns a essas organizações, tais como: crescimento, diferenciação, e ordem hierárquica. O aparecimento do conceito de organização dos seres vivos como uma teoria bem configurada se deveu a Humberto Maturana em 1960.

Maturana entende como “ser vivo” toda rede de interações moleculares que produz a si mesma e especifica os seus próprios limites (Maturana & Varela, 2002). Assim, Maturana introduz o conceito de “organização autopoiética” como o tipo de organização que caracteriza os seres vivos (Maturana & Varela, 2002). Autopoiese significa autoprodução ou autocriação. Segundo Emmeche e El-Hani (2000) trata-se de um termo para organização circular de um sistema vivo. Exemplo: Pense em uma célula. Seu limite é dado pela membrana biológica que forma um compartimento separado do meio externo. No interior deste compartimento todos o processos metabólicos ocorrem. Por outro lado, esse limite, ou fronteira, como no caso de uma membrana celular, é um produto do metabolismo do próprio sistema, sem o qual ele não existiria. Assim, a membrana existe por causa do metabolismo. Por outro lado, essa mesma membrana é parte intrínseca do sistema, sem a qual não poderia haver metabolismo. Cada um é determinante para a existência do outro, caso contrario se perderia a unidade do sistema que se desintegraria (figura organização circular, em baixo).
Éssa é a idéia da organização circular como atributo definidor dos sistemas vivos. Se por um lado temos uma rede de interações capaz de criar limites (membranas), por outro, esse limite se torna uma condição obrigatória para a operação da própria rede, caracterizando um tipo de complexidade circular. Têm-se aí dois aspectos de um mesmo fenômeno que gera uma unidade autopoiética autônoma, pois toda a sua dinâmica se dará dentro dos seus próprios limites, criando uma unidade distinta e separada dos processos que ocorrem além de suas fronteiras.

Acho que agora, se lermos com toda a tenção, poderemos entender as palavras de Maturana: “sistemas vivos são constituídos como unidades ou entidades discretas, com dinâmicas circulares fechadas de produções moleculares abertas ao fluxo de moléculas através delas, nas quais tudo pode mudar, exceto sua dinâmica circular fechada de produções moleculares”. Então, segundo Emmeche e El-Hani (2000), não se trata de negar a importância do intercambio entre sistema vivo e ambiente. A rede de componentes que corresponde ao sistema vivo é fechada em termos organizacionais mas aberta em termos materiais e energéticos, ou seja, ela está sempre trocando material e energia com o ambiente externo.

O tipo de organização de diferentes sistemas determina diferentes classes de sistemas (sistemas abertos ou fechados). Considerando que os seres vivos caracterizam-se por produzirem de modo contínuo a si próprios, as espécies de seres vivos se distinguem por terem estruturas distintas (tais como os gatos, cachorros, peixes, etc.), mas se igualam por terem organizações iguais, ou seja, organizações autopoiéticas (Maturana & Varela, 2002). Para Maturana, um sistema vivo e dinâmico possui organização circular, atuando como uma rede de processos fechado sobre si mesma. Entretanto, tal sistema existirá como tal enquanto sua organização se conservar ao longo das mudanças estruturais geradas pela troca com o meio externo (alimento, calor, etc).


Segundo Vasconcellos (2003), Maturana diferencia um sistema aberto de um fechado com base no fluxo de informações ou instruções que o sistema pode receber de fora. Ou seja, sistemas cujo comportamento é determinado por um input são sistemas artificiais e, portanto, sistemas abertos, pois o fluxo de componentes de fora para dentro determina o seu comportamento posterior (output), como é o caso de jogos de computador e programas geradores de imagens, no qual ao serem inseridos dados, mudam suas estruturas e organizações (figura ao lado).

No caso dos seres vivos, os sistemas apresentam um fechamento estrutural, ou seja, são fechados à informação. De acordo com esse princípio, seu comportamento não pode ser determinado de fora, por qualquer informação que seja, e o ambiente não pode ter com esses sistemas uma interação instrutiva, sendo considerado um sistema fechado.

Para concluir, os sistemas autopoiéticos não consideram o tempo como um parâmetro relevante. Segundo Letelier e colaboradores (2003), sistemas autopoiéticos são atemporais e intrinsecamente relacionais, o que os torna diferenciados e descolados das teorias que consideram o tempo como uma variável independente e enquadram os fenômenos biológicos na linguagem das equações diferenciais. Segundo Casti (1988), em certas circunstâncias, o tempo pode ser incorporado para certos modelos ou formulações, pois os sistemas vivos trocam rotineiramente de componentes dentro de uma dinâmica de destruição e criação estrutural durante a ontogenia (nascimento, aprendizado, desenvolvimento motor e morte de um ser vivo). Entretanto, na medida em que essas mudanças estruturais ocorrem, a organização do sistema se mantém inalterada, pois é atemporal. Ou seja, a estrutura muda com o tempo, mas a organização do sistema permanece inalterada (Kampis, 1991).

Sob esse aspecto, um sistema autopoiético pode ser descrito como um sistema complexo dentro das prerrogativas de Demo (2002) e Gell-man (1996), no sentido de que se trata de uma estrutura dinâmica e emergente, ou seja, muda irreversivelmente de estado ao longo do tempo sem perder a sua organização, pois essa é atemporal. Nesse contexto podemos enxergar os seres humanos. Nascem, se desenvolvem, amadurecem, envelhecem e morrem. Ou seja, mudam de estado por períodos determinados. Entretanto, não podem estar meio vivos. Ou estão vivos ou não. Grande abraço e até a próxima.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

O que é a vida?



Olá! Estamos todos conscientes de que os tópicos abordados aqui são baseados em evidências científicas até então irrefutáveis. Ou seja, 1) foi demonstrado que genes responsáveis pela formação de dentes em aves existem mas apenas em estado não funcional; 2) o Dictyostelium discoideum é um organismo unicelular que pode se organizar como um organismo multicelular, tal como os metazoários, a depender das condições ambientais; 3) tanto os genes dos colágenos quanto os das moléculas de adesão possuem sequências de pares de bases altamente conservadas, estando presentes praticamente em todas as espécies de vertebrados e invertebrados conhecidos; 4) o processo evolutivo é um fato científico e não uma questão de fé, tal qual demonstrado no estudo das inúmeras variedades de espécies animais e vegetais, domésticos e /ou selvagens, bem como por evidências fósseis, anatômicas e moleculares fartamente apresentadas pelos cientistas.

Entretanto, conceitos tais como moléculas fósseis funcionais e não funcionais podem ser entendidos como possíveis convenções de caráter didático e hipotético. Essa é a nossa intenção, atualizar dados sobre a evolução e criar hipóteses com base nesses dados. Em fim: biologia teórica. Estou escrevendo isso apenas para lembrar o que já foi escrito aqui em postagens anteriores e para introduzir um pensamento que se tornou um dos mais importantes paradigmas da biologia teórica. Trata-se da “organização e estrutura dos seres vivos” tal qual Maturana e Varela (1884) elaboraram com base em experimentos em neurobiologia.

É consenso que a adaptação de um ser vivo surge primeiro no domínio microscópico dos genes (genótipo) para depois se expressar no nível micro ou macroscópico (fenótipo) dessa mesma individualidade. Mas é na totalidade do ser, aquilo que Maturana chama de fenótipo ontogênico, que se insere uma das grandes questões dos neurobiólogos Maturana e Varela. A organização da vida. Como ela se distingue daquilo que não é vivo e se mantém de forma distinta como uma individualidade, plenamente adaptada, durante todo o seu ciclo biológico.

O mais interessante sobre a noção do que seja a vida em Maturana e Varela é que ela nos “iguala” a qualquer outro ser vivo do ponto de vista de sua organização. Darwin já havia nos igualado a outras espécies do ponto de vista evolutivo. Ou seja, somos todos descendentes de um ancestral comum, mas por acúmulos de variações sucessivas devido a infinitas recombinações genéticas, adquirimos formas (fenótipos) diversificadas. Em Maturana, o princípio da evolução é aceito, entretanto para ele o organismo não se adapta mas apenas conserva a sua adaptação sem nunca a perder. A sistemática com base na genética demonstrou que o que nos torna mais ou menos próximos em termos de grau de parentesco é a homologia gênica. Por exemplo, dados mais pessimistas dizem que a homologia gênica entre o chipanzé e o homem é de 94%. Assim, chipanzé e homem diferem em apenas 6% geneticamente. Em Maturana as espécies são iguais do ponto de vista das suas organizações e diferentes do ponto de vista estrutural. Se Darwin pensasse na vida sob a ótica “meta-neo-pós-modernista” dos sistemas complexos adaptativos, não sei se entenderia a vida como um sistema aberto. Já em Maturana a vida é um sistema fechado no qual... Vamos fazer o seguinte, uma pausa para leituras importantes e embasamentos necessários para que a coisa fique bem amarrada sem deixar muitos “filósofos” de cabelo em pé. Até muito breve.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Pensamentos e hipóteses em Dictyostelium discoideum


Continuando a postagem anterior, o D. discoideum é um exemplo de organização multicelular derivada de um organismo unicelular. Então, como ele vive? Durante sua fase unicelular pode ser encontrado sob a forma de amebas solitárias vivendo em ambientes repletos de matéria orgânica em decomposição e alimentando-se de bactérias. Há quem acredite que, na sua forma multicelular, o D. discoideum possa viver e se alimentar durante várias semanas de resíduos orgânicos em decomposição presentes nas florestas ou bosques, ou até mesmo em jardins residenciais em dias claros e úmidos, semelhantes aos que encontramos nas estações de verão/outono. O seu aspecto parece o de uma substância de cor amarelo/avermelhada cobrindo alguns centímetros de, por exemplo, uma madeira apodrecida. Essa massa se move pelo chão vagarosamente, mas seu movimento só pode ser percebido quadro a quadro, ou seja, a partir de imagens capturadas com uma máquina digital durante vários dias pois o seu deslocamento é muito lento. A reprodução na fase unicelular é assexuada e se dá por fissão binária, onde cada célula replica-se gerando clones de si mesma.

A passagem da forma unicelular para a multicelular inicia-se quando os recursos alimentares são exauridos. A partir daí, grupos individuais de amebas secretam um fator chamado de AMPc (adenosina monofosfato cíclico) que faz com que centenas ou milhares dessas amebas migrem em direção a um ponto central. Ali, elas se agrupam umas sobre as outras formando uma estrutura cônica fortemente aderida. Na parte mais alta deste cone forma-se uma ponta que, lentamente, se curva para frente. Agora o D. discoideum se parece com uma lesma (também chamada de pseudo-plasmódio) e passa a se movimentar como tal. O tempo transcorrido até este momento é de 14 horas. De um modo geral, o movimento do D. discoideum ocorre em ambientes com pouca luz e úmidos. Quando ele alcança locais iluminados, a migração é interrompida e inicia-se um processo de diferenciação celular no qual o organismo desenvolve um corpo de frutificação composto por um talo ou pedúnculo, semelhante a um cogumelo. Na parte superior formam-se vacúolos no qual se desenvolvem esporos. Vinte e quatro horas após a formação do corpo de frutificação, os esporos são dispersos e cada um deles se transforma em uma nova mixamoeba de vida livre.

Vários são os mecanismos envolvidos nesse processo. O certo é que, diferente das outras amebas, o D. discoideum possui no seu genoma (conjunto de todos os genes de um organismo) os genes responsáveis pela sua diferenciação. Isto confere a ele uma vantagem adaptativa enorme, pois, em épocas de escassez de alimentos, quando a maioria dos micro-organismos morrem, ele produz esporos resistentes que permanecem “dormentes” até que as condições ambientais se tornem novamente favoráveis, levando cada esporo a se transformar em uma mixamoeba unicelular de vida livre novamente.

Alguns aspectos devem ser levados em consideração nesse ponto: 1) Os mecanismos que fazem com que organismos unicelulares se agreguem e diferenciem em pelo menos dois tipos celulares distintos são dependentes da expressão de moléculas de adesão na superfície de suas membranas. Isto sugere que, por ser o D. discoideum um organismo primitivo, as moléculas de adesão devem ter sido um dos primeiros caracteres surgidos na evolução que permitiram a transição dos organismos unicelulares para multicelulares. Esse raciocínio é facilmente dedutível quando se estuda Biologia do Desenvolvimento ou Embriologia Comparada. Muitos dos mecanismos apresentados aqui, tais como: Migração celular, expressão de moléculas de adesão e diferenciação celular, também ocorrem no desenvolvimento embrionário de todos os vertebrados de uma maneira muito semelhante ao que ocorre com o D. discoideum, ao menos nas fases iniciais do desenvolvimento embrionário. 2) O comportamento do D. discoideum evidencia uma importante característica dos seres vivos que é a sua propriedade emergente, ou seja, os seres vivos se auto-organizam a partir de certas condições iniciais, que no caso do D. discoideum está representada pela escassez de alimentos, gerando uma novo estado que lhe confere maior capacidade adaptativa do ponto de vista evolutivo, ou maior plasticidade biológica, diferente de adaptação evolutiva (comunicação pessoal por Henrique Leonel Lenzi), do ponto de vista ontogenético ou até mesmo social. E não somos todos nós assim? Opa, isso pode ser um bom tópico para uma outra postagem. Até a próxima.
 
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