terça-feira, 17 de janeiro de 2023

 

Aves de uma paixão

Prefácio

Em dezembro de 2022 eu recebi do meu querido amigo e escritor Elísio Gomes Filho um convite honroso para prefaciar o seu último livro intitulado “Aves de uma Paixão”, sobre passarinhos, aves de rapina, galináceos e muitos outros vertebrados voadores de uma localidade histórica do Município de Cabo Frio. O Escritor Elísio é um Historiador Ambiental experimentado que já escreveu inúmeros livros sobre tragédias e naufrágios no litoral da cidade de Cabo Frio. Desta vez ele nos brindou com um compêndio sobre a avifauna desta localidade que, não por acaso, é a nossa casa. Trata-se do Condomínio Rural Fazenda da Praia (CRFP), onde temos os nossos “sítios”. Sim, aquele ambientalista veio ao meu portão confiar a mim uma importante missão.

Após o convite, retornei para o interior do meu sitio e, preocupado, me deparei com um grupo de anus-brancos fazendo uma algazarra enorme no bosque em frente a minha casa, exatamente no mesmo local onde as minhas galinhas polonesas reviravam o solo obsessivamente em busca de larvas de besouros, cupins, formigas e matéria orgânica em decomposição. Pensei: Que sensação maravilhosa poder experimentar uma vida imersa na natureza depois de tantas décadas escalando degraus acadêmicos nos territórios oprimidos das grandes cidades do Brasil. Mentalmente agradeci por isso. 

O CRFP é um lugar aonde ainda se vê Ipês, Paineiras, e a árvore mais icônica de todo o território nacional, o Pau-brasil, tão violentamente explorado pelos portugueses, franceses e holandeses, que rapinaram estas terras por mais de 300 anos.  Também tem Pau-ferro, que, com seus imponentes quase 30 metros de altura fornece uma ampla base de observação direta para o território de caça do Acauã, um falcão predador de cobras. Afora os Jatobás e muitas outras espécies, existe uma enorme variedade de leguminosas com destaque para os Flamboyants e suas esplendorosas florações multicoloridas, que formam um verdadeiro ecossistema de copa de árvore colonizado por orquídeas e bromélias de todos os tipos, que sustentam pequenos anfíbios, cobras arborícolas, primatas, gambás, e uma infinidade de insetos saborosos que se escondem por entre as cascas esfoliadas dos caules das imensas árvores, grande parte ameaçada de extinção.

Ao folhear inicialmente aquele compêndio, degustando lentamente seu conteúdo em formato de prosa lírica, entendi que aquela obra era muito maior do que apontavam seus objetivos. Falar da diversidade ornitológica do entorno do CRFP era quase o mesmo que fazer o inventário da avifauna de uma região muito maior, repleta de histórias de importância épica. Portanto, tratava-se de uma contribuição para a compreensão da realidade atual de uma das regiões de maior importância da Região dos Lagos, remanescente dos vastos campos, brejos, dunas e matas nativas desprotegidas do entorno do Parque Estadual Costa do Sol.

Em um dado momento da leitura me deparei com uma breve referencia ao ornitólogo Johan Dalgas Frisch e sua vasta obra. Levantei-me apressado em direção a minha pequena biblioteca rural para uma rápida averiguação. E sim! Lá estava ele: “Aves Brasileiras e Plantas que a Atraem” de Johan Dalgas Frisch, terceira edição lançada em 2005. 


Como se diz por aí: Agora formou! Aquele era o cara. Frisch estava para as aves assim como Augusto Ruschi para as orquídeas e o grande Bernoit Mandelbrot para os fractais. Sim, essas coisas estão interligadas e eu mesmo escrevi sobre isso no meu blog MicroSintonias: Fractais na Natureza (2009) (https://microsintonias.blogspot.com/2009/06/fractais-na-natureza.html) e;  Interface Fractal (2009) (http://microsintonias.blogspot.com/2009/05/interface-fractal.html), entre outros, basta conferir. Então estava tudo dominado e recomendado. Era só continuar a leitura.

Ainda sob o impacto conteudístico do livro, lembrei que em 2011 eu havia me transferido do Rio de Janeiro, diretamente do Bairro do Flamengo, em plena ebulição cultural dos dias ensolarados do Aterro do Flamengo e das noites boêmias da Praça São Salvador, para uma cidade provinciana e mal falada (na época), chamada Cabo Frio, no Rio de Janeiro. A despeito do rastro de surpresa impresso no imaginário dos meus amigos por eu ter deixado inconclusa minha carreira na Fiocruz, quatro anos após o meu doutoramento em ciências, hoje me deparo com os louros desta decisão ao perceber os saltos quânticos que dei ao migrar definitivamente para estes “sertões litorâneos”. Digo sertões porque, não fosse essa uma região litorânea, sertanejo seria o povo daqui, se não vejamos. Cabo Frio possui um clima misteriosamente seco, de baixa precipitação (máximo de 750 mm/ ano) tal qual ocorre no Nordeste brasileiro, limitando a região a um território estritamente semiárido, ou tropical seco, diferente do que ocorre em todo Estado do Rio de Janeiro, onde predomina um clima tropical semi-úmido, com chuvas abundantes no verão podendo ultrapassar facilmente os 1.800 mm anuais. Sim, para um biólogo como eu, toda essa dinâmica natural era encantadora e apontava para um vislumbre ainda maior sobre os inúmeros mistérios que essa terra ainda teria a desvendar.

“As aves que aqui gorjeiam” das quais se trata o livro, podem ser observadas entre os Municípios de Cabo Frio e São Pedro da Aldeia (22º47’17.95”S  42º01”43.50”O), em um território encravado entre pequenas áreas preservadas e uma ampla extensão devastada, sendo o próprio condomínio um oásis que ainda oferece alguma proteção para uma diversidade de animais que de alguma forma, sustenta uma cadeia alimentar dinâmica e em constante ameaça, pois existem muitos recortes entre as áreas não degradadas que inviabilizam o fechamento de ciclos vitais, desde a nidificação, reprodução, incubação e nascimento, até o crescimento e morte das aves que por aqui passam ou se estabelecem. 

Ao sul do Condomínio encontra-se o Parque Municipal Dormitório das Garças (10 minutos de carro), e ao norte a Reserva Florestal Tamoios (20 minutos de carro), da qual faz parte a Fazenda Campos Novos, que abrigou o naturalista inglês Charles Darwin em 1831, quando este se deparou pela primeira vez com a diversidade da floresta tropical. A Leste (25 minutos de carro), encontra-se o litoral de Búzios - RJ.

A descrição geográfica é extremamente importante, pois o leitor pode verificar a paisagem local seguindo as coordenadas pelo Google Earth Pro. Ele verá que a expansão imobiliária é altamente predatória e está extinguindo os últimos brejos característicos dos ecossistemas daqui, valiosos para a manutenção da biodiversidade de aves endêmicas e migratórias, uma vez que praticamente não existem rios nesta região. Portanto, os únicos mananciais que fornecem suporte vital para a fauna são os brejos de água doce que abrigam anfíbios, répteis, mamíferos e uma grande diversidade de aves.

A leitura agradável a que o autor nos convidou a fazer me fez ir fundo em meus delírios acadêmicos. Em um dado momento me vi na “Cabo Frio histórica”, no seu polo rural, onde, outrora, o CRFP era parte de uma rica floresta tropical repleta de trilhas por onde passavam índios, principalmente os Tamoios, em busca de caça, ou voltando de alguma colheita, ou até mesmo de algum ritual antropofágico como era de costume por estas bandas. 


Em 1831, quando a devastação colonialista já se mostrava visível, a famosa Fazenda Campos Novos, marco principal desta região, abrigou o naturalista inglês Charles Darwin, quando este se deparou pela primeira vez com a diversidade da floresta tropical e, a partir daí, abalou o mundo com a publicação de “A Origem das Espécies” em 1859. Infelizmente, o encanto de Darwin ficou comprometido ao se deparar com a dura realidade do processo colonial brasileiro calcado no escravismo cruel e predatório. Além disso, o alto nível de desflorestamento e extermínio dos índios locais o levou a escrever em seu diário, quando partia do Brasil, que esperaria jamais voltar a um país escravista.

E não era pra menos, o extermínio dos índios e o desmatamento desenfreado das florestas tropicais já ocorriam desde o período das capitanias hereditárias iniciado em 1530. Nesta época, Cabo Frio fazia parte da capitania de São Vicente, que obteve relativo sucesso frente às demais capitanias por vários motivos, e por isso, perdurou até o século XVIII. A atividade econômica diversificada, calcada na plantação de legumes, cana-de-açúcar, mandioca, feijão e milho, foi determinante para a expansão urbana da cidade, cujas maiores produções eram da fazenda Campos Novos, aqui perto, praticamente ao lado do que é hoje o CRFP

Segundo o historiador Boris Fausto, a prosperidade de São Vicente só foi possível devido ao desenvolvimento da produção de açúcar, aliado com uma política menos hostil em relação aos indígenas. Imagine então o que foram as políticas indigenistas nas demais capitanias!

A leitura deste livro me fez viajar por vários lugares e períodos históricos, evidenciando a capacidade do autor de induzir o leitor a vivenciar coletivamente a sua experiência. Portanto, darei uma pausa nos meus devaneios para que o leitor possa mergulhar também nesta mesma experiência ornitológica. Espero que este prefácio contribua para georreferenciar melhor o ambiente da narrativa, e contextualizar historicamente o CRFP, palco desta prosa.

Boa Leitura!

Waldemiro Romanha.

MD e PhD em Ciências pelo Instituto Oswaldo Cruz.

Professor Universitário.

Principais livros escritos:

·  História das Políticas Públicas de Saúde no Brasil (2022);

·  Análise de Risco Ambiental (2016).

 

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