Aves de uma paixão
Prefácio
Após
o convite, retornei para o interior do meu sitio e, preocupado, me deparei com
um grupo de anus-brancos fazendo uma algazarra enorme no bosque em frente a
minha casa, exatamente no mesmo local onde as minhas galinhas polonesas reviravam
o solo obsessivamente em busca de larvas de besouros, cupins, formigas e
matéria orgânica em decomposição. Pensei: Que sensação maravilhosa poder
experimentar uma vida imersa na natureza depois de tantas décadas escalando
degraus acadêmicos nos territórios oprimidos das grandes cidades do Brasil. Mentalmente
agradeci por isso.
O
CRFP é um lugar aonde ainda se vê Ipês, Paineiras, e a
árvore mais icônica de todo o território nacional, o Pau-brasil, tão
violentamente explorado pelos portugueses, franceses e holandeses, que rapinaram
estas terras por mais de 300 anos. Também
tem Pau-ferro, que, com seus imponentes quase 30 metros de altura fornece uma ampla
base de observação direta para o território de caça do Acauã, um falcão
predador de cobras. Afora os Jatobás e muitas outras espécies, existe uma
enorme variedade de leguminosas com destaque para os Flamboyants e suas
esplendorosas florações multicoloridas, que formam um verdadeiro ecossistema de
copa de árvore colonizado por orquídeas e bromélias de todos os tipos, que
sustentam pequenos anfíbios, cobras arborícolas, primatas, gambás, e uma infinidade de insetos saborosos que se escondem por entre as cascas esfoliadas
dos caules das imensas árvores, grande parte ameaçada de extinção.
Ao
folhear inicialmente aquele compêndio, degustando lentamente seu conteúdo em
formato de prosa lírica, entendi que aquela obra era muito maior do que apontavam
seus objetivos. Falar da diversidade ornitológica do entorno do CRFP era quase o
mesmo que fazer o inventário da avifauna de uma região muito maior, repleta de
histórias de importância épica. Portanto, tratava-se de uma contribuição para a
compreensão da realidade atual de uma das regiões de maior importância da
Região dos Lagos, remanescente dos vastos campos, brejos, dunas e matas nativas
desprotegidas do entorno do Parque Estadual Costa do Sol.
Em um dado momento da leitura me deparei com uma breve referencia ao ornitólogo Johan Dalgas Frisch e sua vasta obra. Levantei-me apressado em direção a minha pequena biblioteca rural para uma rápida averiguação. E sim! Lá estava ele: “Aves Brasileiras e Plantas que a Atraem” de Johan Dalgas Frisch, terceira edição lançada em 2005.
Ainda
sob o impacto conteudístico do livro, lembrei que em 2011 eu havia me transferido
do Rio de Janeiro, diretamente do Bairro do Flamengo, em plena ebulição
cultural dos dias ensolarados do Aterro do Flamengo e das noites boêmias da
Praça São Salvador, para uma cidade provinciana e mal falada (na época),
chamada Cabo Frio, no Rio de Janeiro. A despeito do rastro de surpresa impresso
no imaginário dos meus amigos por eu ter deixado inconclusa minha carreira na
Fiocruz, quatro anos após o meu doutoramento em ciências, hoje me deparo com os
louros desta decisão ao perceber os saltos quânticos que dei ao migrar
definitivamente para estes “sertões litorâneos”. Digo sertões porque, não fosse
essa uma região litorânea, sertanejo seria o povo daqui, se não vejamos. Cabo
Frio possui um clima misteriosamente seco, de baixa precipitação (máximo de 750
mm/ ano) tal qual ocorre no Nordeste brasileiro, limitando a região a um
território estritamente semiárido, ou tropical seco, diferente do que ocorre em
todo Estado do Rio de Janeiro, onde predomina um clima tropical semi-úmido, com
chuvas abundantes no verão podendo ultrapassar facilmente os 1.800 mm anuais.
Sim, para um biólogo como eu, toda essa dinâmica natural era encantadora e apontava
para um vislumbre ainda maior sobre os inúmeros mistérios que essa terra ainda
teria a desvendar.
“As aves que aqui gorjeiam” das quais se trata o livro, podem ser observadas entre os Municípios de Cabo Frio e São Pedro da Aldeia (22º47’17.95”S 42º01”43.50”O), em um território encravado entre pequenas áreas preservadas e uma ampla extensão devastada, sendo o próprio condomínio um oásis que ainda oferece alguma proteção para uma diversidade de animais que de alguma forma, sustenta uma cadeia alimentar dinâmica e em constante ameaça, pois existem muitos recortes entre as áreas não degradadas que inviabilizam o fechamento de ciclos vitais, desde a nidificação, reprodução, incubação e nascimento, até o crescimento e morte das aves que por aqui passam ou se estabelecem.
A
descrição geográfica é extremamente importante, pois o leitor pode verificar a
paisagem local seguindo as coordenadas pelo Google
Earth Pro. Ele verá que a expansão imobiliária é altamente predatória e está
extinguindo os últimos brejos característicos dos ecossistemas daqui, valiosos
para a manutenção da biodiversidade de aves endêmicas e migratórias, uma vez
que praticamente não existem rios nesta região. Portanto, os únicos mananciais
que fornecem suporte vital para a fauna são os brejos de água doce que abrigam
anfíbios, répteis, mamíferos e uma grande diversidade de aves.
A leitura agradável a que o autor nos convidou a fazer me fez ir fundo em meus delírios acadêmicos. Em um dado momento me vi na “Cabo Frio histórica”, no seu polo rural, onde, outrora, o CRFP era parte de uma rica floresta tropical repleta de trilhas por onde passavam índios, principalmente os Tamoios, em busca de caça, ou voltando de alguma colheita, ou até mesmo de algum ritual antropofágico como era de costume por estas bandas.
E não era pra menos, o extermínio dos índios e o desmatamento desenfreado das florestas tropicais já ocorriam desde o período das capitanias hereditárias iniciado em 1530. Nesta época, Cabo Frio fazia parte da capitania de São Vicente, que obteve relativo sucesso frente às demais capitanias por vários motivos, e por isso, perdurou até o século XVIII. A atividade econômica diversificada, calcada na plantação de legumes, cana-de-açúcar, mandioca, feijão e milho, foi determinante para a expansão urbana da cidade, cujas maiores produções eram da fazenda Campos Novos, aqui perto, praticamente ao lado do que é hoje o CRFP.
A leitura deste livro me fez viajar por vários
lugares e períodos históricos, evidenciando a capacidade do autor de induzir o
leitor a vivenciar coletivamente a sua experiência. Portanto, darei uma pausa
nos meus devaneios para que o leitor possa mergulhar também nesta mesma experiência
ornitológica. Espero que este prefácio contribua para georreferenciar melhor o
ambiente da narrativa, e contextualizar historicamente o CRFP,
palco desta prosa.
Boa Leitura!
Waldemiro
Romanha.
MD e PhD em
Ciências pelo Instituto Oswaldo Cruz.
Professor
Universitário.
Principais livros escritos:
· História das Políticas
Públicas de Saúde no Brasil (2022);
· Análise de Risco
Ambiental (2016).
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