sábado, 6 de janeiro de 2024

Capítulo 4/1: Do “Massacre de Manguinhos” ao "Rock In Rio I".

 

Do “Massacre de Manguinhos” ao "Rock In Rio I" –  A saúde e a cultura no contexto da  ditadura militar de 1964.


Prezado (a) amigo (a), se quiser utilizar o meu trabalho como referência para o seu trabalho, siga o modelo abaixo.

ROMANHA, Waldemiro de Souza. Do “Massacre de Manguinhos” ao "Rock In  Rio I" – a saúde e a cultura no contexto da  ditadura militar de 1964. In: ROMANHA, Waldemiro de Souza. Políticas Públicas de Saúde. Rio de Janeiro: UVA, 2021. p. 45 – 60. Disponível em: 


No Brasil, a luta por um sistema de saúde mais justo e inclusivo remonta às décadas de 1940 e 1950. Desde então, muitos anos se passaram até que fosse alcançada uma política pública em que as prerrogativas principais fossem a universalização (o fim da velha dicotomia entre saúde pública e assistência médica); a equidade (justiça baseada na diferença) e a integralidade (o ser humano visto como alguém que sente, sofre e chora, e que também pode ser feliz).

Entretanto, a previdência social e a saúde pública na década de 1970 ainda permaneciam dissociadas entre si. No caso da previdência, tratava-se de uma política pública cuja organização institucional era financiada pelos trabalhadores, governo e empresas. O benefício concedido ao trabalhador contribuinte era o de uma aposentadoria remunerada gerada pelo Estado quando este completasse o tempo obrigatório de contribuição, ou quando não pudesse mais trabalhar por doença ou acidente de trabalho. Outros benefícios incluíam serviços de assistência médica “gratuita” ao longo do tempo de serviço. Dentre os muitos problemas relacionados a este modelo de previdência destacaram-se:

  • O enriquecimento de empresas privadas à custa do financiamento público.
  • O nível de cobertura limitado e não inclusivo, excluindo da seguridade aqueles que não podiam contribuir com a previdência.
  • A vulnerabilidade do sistema que permitia inúmeras fraudes.

Portanto, os trabalhadores que não possuíam carteira assinada não tinham direito à saúde – a não ser em hospitais de caridade. Estes correspondiam a maior parte da população.

Antes do SUS a saúde no Brasil era apenas para alguns.

No Brasil quem não tinha emprego formal ficava ao “deus-dará”. Outro problema importante era que a saúde pública não estava integrada a assistência médica. A velha dualidade ainda perdurava e representava um entrave para a efetivação de uma política de saúde que fosse mais justa, universal e integrada com outros setores. Entretanto, o sentimento de reforma crescia no seio da sociedade como um processo expansivo de antigas aspirações do movimento sanitário, ou de grande parte dos sanitaristas.

Do autoritarismo infame à liberdade de expressão.

A década de 1970 foi um período particularmente difícil. O Brasil experimentava uma das fases mais duras do regime militar em que vigorava o Ato Institucional de número 5 (AI 5). Como sabemos, o regime começou em 1964 com um golpe de estado sobre o então presidente eleito João Goulart, apoiado por uma elite que detinha o poder econômico e por uma classe média conservadora, consolidando o sistema político brasileiro como um processo raramente democrático. A saúde refletia a instabilidade política e jurídica desse sistema disruptivo. As intermináveis reformas sempre ocorriam no bojo de interesses populistas voltados para a legitimação de governos autoritários que, hora tentavam satisfazer as justas demandas do movimento sanitário, hora as demandas dos trabalhadores, sem perder o mercado de vista, seu principal interesse e maior aliado (Ponte & Falleiros, 2010).

É importante destacar que o AI-5 foi um decreto emitido pelo General Costa e Silva em 1968 que instaurou o período mais sombrio do regime militar. Muitos historiadores e jornalistas consideram que o AI-5 representou de fato a consolidação da ditadura militar no Brasil. Com o AI-5, o governo adquiriu poderes quase que absolutos sobre a República. O Congresso foi fechado, os direitos políticos e garantias constitucionais dos cidadãos foram suprimidos, políticos foram cassados, exilados e assassinados (Gaspari, 2002).

A ditadura militar de 1964 durou 21 anos e custou muito caro ao Brasil. Os jovens eram permanentemente reprimidos e jamais puderam, por exemplo, ver um show dos Beatles em solo brasileiro (fig. 1). 

Fig.1. Beatles.

Os Militares, com sua pauta ultraconservadora, tinham conceitos muito particulares sobre pátria, família, religião, tradição e liberdade, e por isso mesmo consideravam inadequados todos os movimentos artísticos de contestação. Com isso, a juventude brasileira não pôde acompanhar os movimentos de Blues e Jazz que se ressignificavam pelo mundo; não participaram dos movimentos Pop que quando raros, apareciam nas telenovelas constantemente censuradas; e como se não bastasse, mal conheceram os grandes ícones do Rock and roll das décadas de 1970 e 1980 até 1985.


No período autoritário ocorreram sequestros, interrogatórios, torturas e assassinatos daqueles que ousaram criticar, protestar, ou se opor ao regime (fig. 2).
 
Fig. 2. Estudantes velam o corpo do 
secundarista  Edson Luis morto pela ditadura.

O sucesso de uma ditadura depende da capacidade do sistema em eliminar cientistas, intelectuais, professores, artistas, sacerdotes progressistas (católicos, protestantes ou umbandistas) e todas as classes pensantes de uma sociedade. 

Foi o que aconteceu no primeiro de abril de 1970 no Instituto Oswaldo Cruz (IOC). Após o AI-5 (13/12/1968), dez dos principais cientistas do IOC tiveram seus direitos políticos suspensos por perseguição pessoal e foram impedidos de trabalhar. A punição se estendeu à proibição de trabalhar em qualquer outro órgão federal (Fig. 3). 

Acusados de conspiração, os cientistas foram interrogados e indagados se eram comunistas ou se participavam de alguma atividade política. Entre as acusações, constava que eles eram a favor de ampliar as atividades do IOC para além da produção de soro e vacina. Ilógico não?

Fig. 3. O dez de Manguinhos.

Anteriormente estes cientistas haviam denunciado o médico Francisco de Paula da Rocha Lagoa, ex-diretor do IOC e recém-empossado como Ministro da Saúde, por desvio de verba de vários projetos de combate  a malária,  peste bubônica e  meningite. Além disso, os cientistas eram a favor da criação de um Ministério de Ciência e Tecnologia, o que não interessava aos Militares. Estavam aí os ingredientes que em países democráticos seriam motivos de condecoração. Mas na ditadura brasileira as estruturas de poder não tinham limites nas suas arbitrariedades, e o Brasil retrocedeu décadas nas pesquisas que hoje o colocaria na lista dos principais países em produção científica na área de saúde e produção de vacinas, com reflexos nas políticas necessárias para a consolidação de um Estado de Bem-Estar Social. 

Os prejuízos para a ciência brasileira advindos destas arbitrariedades só se equipararam à explosão do Veículo Lançador de Satélite brasileiro em 2003, que matou os principais cientistas daquela área de uma só vez. Os pesquisadores do IOC tiveram que fechar seus laboratórios e dispensar dezenas de jovens estudantes de mestrado e doutorado, destruindo carreiras e sonhos para sempre (Lent, 2019).

Em 1979 subiu ao poder o último presidente da ditadura: o General João Batista de Oliveira Figueiredo (1979-1985). Militar pertencente à linha dura do regime, Figueiredo foi eleito indiretamente através de um colégio eleitoral concorrendo pela Aliança Renovadora Nacional (ARENA / atual União Brasil), partido que congregava os parlamentares apoiadores da ditadura. Além da ARENA, o único partido de oposição permitido até então pelos militares era o Movimento Democrático Brasileiro (MDB / atual PMDB), que apesar de ter sido um partido “figurativo” naquele contexto, representava uma porta de entrada para um modelo soft de oposição. Nesta época, o regime militar já estava bem enfraquecido e carecia de legitimidade. Foi quando o General Figueiredo pronunciou uma de suas “célebres” frases: “Hei de fazer do Brasil uma democracia”. 

E de fato ele contribuiu para isso. O País, sob sua gestão, deu continuidade a uma abertura comercial lenta e gradual iniciada no governo anterior. Ato contínuo, e sob pressão intensa, o governo concedeu anistia ampla, geral e irrestrita aos exilados, permitindo a volta de estudantes, professores, políticos, artistas, intelectuais e cientistas perseguidos pela ditadura durante a vigência do AI-5, incluindo Herbert José de Souza (1935-1997), o Betinho, sociólogo brasileiro e ativista dos direitos humanos que ficou eternizado em “O Bêbado e o Equilibrista”, na letra do espetacular Aldir Blanc (†) e na melodia e harmonização genial de João Bosco.

Com a abertura a população voltou a se manifestar nas ruas, principalmente entre os anos de 1983 e 1984 quando a sociedade civil se mobilizava em torno do movimento das “Diretas Já”. Foram realizados comícios em muitas capitais brasileiras como Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Salvador. Entretanto, mesmo com todo ativismo popular, prevaleceu o modelo utilizado pela ditadura, ou seja,  votação indireta pelo colégio eleitoral em detrimento da Lei Dante de Oliveira que previa uma emenda constitucional pelas diretas. Porem, o sistema já não tinha mais nenhuma legitimidade, e com o apoio da mídia comercial venceu a chapa composta por Tancredo Neves e José Sarney (Reis, 2010).

Dentre os vários hinos que embalaram o movimento destacaram-se as composições de Milton Nascimento com Fernando Brant (†) (Menestrel das Alagoas), e a música de Chico Buarque (Vai Passar) que foram ouvidas nas passeatas do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais entre 1984 e 1985, todas com centenas de milhares de pessoas nas ruas.

Fig. 4. Rock In Rio 1985.
Foto: Carlos Carvalho / Agência O Globo
Finalmente, em janeiro de 1985, com a vitória de Tancredo Neves, foi organizado no Rio de Janeiro o maior festival de rock do mundo em comemoração pela vitória do presidente que foi sem nunca ter sido (parafraseando Dias Gomes), já que ele morreu antes da posse. O Rock in Rio 1 talvez tenha sido o principal marco histórico pop do fim da ditadura no Brasil (fig. 4).

Com o fim da ditadura os cientistas cassados foram reintegrados aos seus cargos. Dos dez cassados de Manguinhos, este autor teve a oportunidade de ter estudado com dois deles: 1. O Dr. Hugo de Souza Lopes (1909-1991), um dos maiores entomólogos do Brasil e professor da Cadeira de Entomologia da Universidade Santa Úrsula (USU - RJ); 2. O Dr. Herman Lent (1911-2004), um dos grandes helmintologistas da Fiocruz e professor da Cadeira de Helmintologia, também da USU.  Ficam aqui as minhas homenagens às memórias destes dois grandes mestres.

Obrigado pela leitura. Se quiser ler todo o conteúdo deste livro entre em contato por WhatsApp (22 97403 4303).

Bibliografia:

1. AGUIAR, Zenaide Neto. SUS. Sistema Único de Saúde: antecedentes, percurso, perspectivas e desafios. São Paulo: Martinare, 2011. Disponível em: Biblioteca Pearson. Acesso em: 20 de fev. 2021.

2. LENT, Herman. “O massacre de Manguinhos”. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2019. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/33216/4/Massacre_Manguinhos_2019_vers_web.pdf. Acesso em: 20 de fev. 2021.

3. JUNIOR, Aluísio Gomes da Silva; ALVES, Carla Almeida. Modelos Assistenciais em Saúde: desafios e perspectivas. In: MAROSINI, Marcia Valéria; CORBO, Ana Maria D’Andrea (org.). Modelo de atenção e a saúde da família. Rio de Janeiro: FIOCRUZ. 2007. p. 1– 5. Disponível em: https://app.uff.br/riuff/bitstream/1/8459/1/modelosassistenciaisemsa%C3%Bade.pdf. Acesso em: 20 de fev. 2021.

4. REIS, José Roberto Franco. O coração do Brasil bate nas ruas: a luta ela redemocratização do país. In: PONTE, Carlos Fidelis; FALLEIROS, Ialê. Na corda bamba de sombrinha: a saúde no fio da história. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2010. Disponível em: https://www.epsjv.fiocruz.br/publicacao/livro/na-corda-bamba-de-sombrinha-a-saude-no-fio-da-historia?fbclid=IwAR27drgpe3QCLjst9GT1a_Xn-MEscaNoGmLJOW70o2--zuVzte1mJFTsyY0

5. AROUCA, Sergio. Democracia é SaúdeIn: CONFERÊNCIA NACIONAL EM SAÚDE, 8., março de 1986, Brasília. Realização: Comissão Organizadora da 8ª Conferência Nacional de Saúde/Núcleo de Video/Fiocruz. Produção: Comissão Organizadora da 8ª Conferência Nacional de Saúde/Fiocruz. Distribuição: VideoSaúde Distribuidora da Fiocruz. Video restaurado em 2013. Publicado no canal VideoSaúde Distribuidora da Fiocruz. 1 video (42min33seg). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-_HmqWCTEeQ. Acesso em: 20 de fev. 2021.

6. D’AVILA, Cristiane. O homem que lançou as bases do Sistema Único de Saúde (SUS)In: Café História. Publicado em 07 dez de 2020. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/hesio-cordeiro-o-homem-que-lancou-as-bases-do-sus/.Acesso em: 20 de fev. 2021.

7. DIMENSTEIN, Magda Diniz Bezerra. O Psicólogo nas Unidades Básicas de Saúde: desafios para a formação e atuação profissionais. Estudos de Psicologia. Natal: v. 3, n. 1, p: 53-81, 1998. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-294X1998000100004&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em: 20 de fev. 2021.

8. SANTOS, Lenir. Região de Saúde e Suas Redes de Atenção: Modelo organizativo-sistêmico do SUS. Ciência Coletiva. Campinas: v. 22, n. 4, p. 1281-1289, 2016. Disponível em: https://www.scielosp.org/pdf/csc/2017.v22n4/1281-1289/pt. Acesso em: 20 de fev. 2021.

9. Brasil. Constituição Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 de fev. 2021.

10. GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada. São Paulo. SCHWARCZ LTDA. 2002.

11. NARVAI, Paulo Capel. Prevsaude: tragédia e farsa. CEBES. 2013. Disponível em: http://cebes.org.br/2013/12/prevsaude-tragedia-e-farsa/. Acesso em: 20 de fev. 2021.

12. PONTE, Carlos Fidelis; FALLEIROS, Ialê. Na corda bamba de sombrinha: a saúde no fio da história. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2010. Disponível em: https://www.epsjv.fiocruz.br/publicacao/livro/na-corda-bamba-de-sombrinha-a-saude-no-fio-da-historia?fbclid=IwAR27drgpe3QCLjst9GT1a_Xn-MEscaNoGmLJOW70o2--zuVzte1mJFTsyY0 

 

 Midiateca

 Mídia 1

Democracia é saúde: Pronunciamento do sanitarista Sergio Arouca durante a 8ª Conferência Nacional em Saúde

Descrição/Sinopse da mídia: 

O Sanitarista Sérgio Arouca discursa sobre a importância da reforma sanitária e sobre o conceito de saúde elaborado na VIII Conferência Nacional de Saúde.

Fonte da mídia:

http://renastonline.ensp.fiocruz.br/recursos/democracia-saude-pronunciamento-sanitarista-sergio-arouca-durante-8a-conferencia-nacional#:~:text=Nacional%20em%20Sa%C3%Bade-,Democracia%20%C3%A9%20sa%C3%Bade%3A%20Pronunciamento%20do%20sanitarista%20Sergio%20Arouca%20durante,8%C2%AA%20Confer%C3%Aancia%20Nacional%20em%20Sa%C3%Bade.

 

Mídia 2

Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS)

Descrição/Sinopse da mídia:

Histórico das Políticas Públicas de Saúde até a nova república.

Fonte da mídia:

http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/instituto-nacional-de-assistencia-medica-da-previdencia-social-inamps#:~:text=O%20Instituto%20Nacional%20de%20Assist%C3%Aancia,voltado%20para%20a%20especializa%C3%A7%C3%A3o%20e.

 

Mídia 3

O SUS em 2020. 

Descrição/Sinopse da mídia:

Debate elaborado sobre o SUS em 2020 no contexto da pandemia de Covid-19. 

Fonte da mídia:

https://www.youtube.com/watch?v=mTUJkblcdFI.




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