sábado, 6 de janeiro de 2024

Capítulo 4/1: Do Massacre de Manguinhos ao Rock In Rio I – A Saúde e a Cultura no Contexto da Ditadura Militar de 1964.

 

Do Massacre de Manguinhos ao Rock In Rio I –  A Saúde e a Cultura no Contexto da  Ditadura Militar de 1964.


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ROMANHA, Waldemiro de Souza. Do Massacre de Manguinhos ao Rock In Rio I – A Saúde e a Cultura no Contexto da Ditadura Militar de 1964. In: ROMANHA, Waldemiro de Souza. Políticas Públicas de Saúde. Rio de JaneiroUVA, 2021. p. 45 – 60. Disponível em: 


No Brasil, a luta por um sistema de saúde mais justo e inclusivo remonta às décadas de 1940 e 1950. Desde então, muitos anos se passaram até que fosse alcançada uma política pública em que as prerrogativas principais fossem a universalização (o fim da velha dicotomia entre saúde pública e assistência médica); a equidade (justiça baseada na diferença) e a integralidade (o ser humano visto como alguém que sente, sofre e chora, e que também pode ser feliz).

Entretanto, a previdência social e a saúde pública na década de 1970 ainda permaneciam dissociadas entre si. No caso da previdência, tratava-se de uma política pública cuja organização institucional era financiada pelos trabalhadores, governo e empresas. O benefício concedido ao trabalhador era uma aposentadoria remunerada quando este completasse o tempo obrigatório de contribuição, ou quando não pudesse mais trabalhar por doença ou acidente de trabalho. Outros benefícios incluíam serviços de assistência médica “gratuitos” ao longo do tempo de serviço. Dentre os muitos problemas relacionados a este modelo de previdência destacaram-se:

  • O enriquecimento de empresas privadas à custa do financiamento público.
  • O nível de cobertura limitado e não inclusivo, excluindo da seguridade aqueles que não podiam contribuir com a previdência.
  • A vulnerabilidade do sistema que permitia inúmeras fraudes.

Portanto, os trabalhadores que não possuíam carteira assinada não tinham direito à saúde – a não ser em hospitais de caridade. Estes formavam a maior parte da população.

Antes do SUS a saúde no Brasil era apenas para alguns.

No Brasil, quem não tinha emprego formal ficava ao “deus-dará”. Outro problema importante era que a saúde pública não estava integrada a assistência médica. A velha dualidade ainda perdurava e representava um entrave para a efetivação de uma política de saúde que fosse mais justa, universal e integrada com outros setores. Entretanto, o sentimento de reforma crescia no seio da sociedade como um processo expansivo de antigas aspirações do movimento sanitário, ou de grande parte dos sanitaristas.

Do autoritarismo infame à liberdade de expressão.

A década de 1970 foi um período particularmente difícil. O Brasil experimentava uma das fases mais duras do regime militar em que vigorava o Ato Institucional de número 5 (AI 5). Como sabemos, o regime começou em 1964 com um golpe de estado sobre o então presidente eleito João Goulart, apoiado por uma elite que detinha o poder econômico e por uma classe média conservadora, que juntas consolidaram o sistema político brasileiro como um regime raramente democrático. A saúde refletia a instabilidade política e jurídica desse sistema disruptivo. As intermináveis reformas sempre ocorriam no bojo de interesses populistas voltados para a legitimação de governos autoritários, que hora tentavam satisfazer as justas demandas do movimento sanitário, hora as demandas dos trabalhadores, sem perder o mercado de vista, seu principal interesse e maior aliado (Ponte & Falleiros, 2010).

É importante destacar que o AI-5 foi um decreto emitido pelo General Costa e Silva em 1968 que instaurou o período mais sombrio do regime militar. Muitos historiadores e jornalistas consideram que o AI-5 representou de fato a consolidação da ditadura militar no Brasil. Com o AI-5, o governo adquiriu poderes quase que absolutos sobre a República. O Congresso foi fechado, os direitos políticos e garantias constitucionais dos cidadãos foram suprimidos, políticos foram cassados, exilados e assassinados (Gaspari, 2002).

A ditadura militar de 1964 durou 21 anos e custou muito caro ao Brasil. Os jovens eram permanentemente reprimidos e jamais puderam, por exemplo, ver um show dos Beatles em solo brasileiro (fig. 1). 

Fig.1. Beatles.

Os Militares, com sua pauta ultraconservadora, tinham conceitos muito particulares sobre pátria, família, religião, tradição e liberdade, e por isso mesmo consideravam inadequados todos os movimentos artísticos de contestação. Com isso, a juventude brasileira não pôde acompanhar os movimentos de Blues e Jazz que se ressignificavam pelo mundo; não participaram dos movimentos Pop que quando raros, apareciam nas telenovelas constantemente censuradas; e como se não bastasse, mal conheceram os grandes ícones do Rock and roll das décadas de 1970 e 1980 até 1985.


No período autoritário ocorreram sequestros, interrogatórios, torturas e assassinatos daqueles que ousaram criticar, protestar, ou se opor ao regime (fig. 2).
 
Fig. 2. Estudantes velam o corpo do 
secundarista  Edson Luis morto pela ditadura.

O sucesso de uma ditadura depende da capacidade do sistema em eliminar cientistas, intelectuais, professores, artistas, sacerdotes progressistas (católicos, protestantes ou umbandistas) e todas as classes pensantes de uma sociedade. 

Foi o que aconteceu no primeiro de abril de 1970 no Instituto Oswaldo Cruz (IOC). Após o AI-5 (13/12/1968), dez dos principais cientistas do IOC tiveram seus direitos políticos suspensos por perseguição pessoal, sendo impedidos de trabalhar tanto no IOC quanto em qualquer outro órgão federal (Fig. 3). 

Acusados de conspiração, os cientistas foram interrogados e indagados se eram comunistas ou se participavam de alguma atividade política. Entre as acusações, constava a preferência por ampliar ampliar as atividades do IOC para além da produção de soro e vacina. Ilógico não?

Fig. 3. O dez de Manguinhos.

Anteriormente, estes cientistas haviam denunciado o médico Francisco de Paula da Rocha Lagoa, ex-diretor do IOC e recém-empossado como Ministro da Saúde, por desvio de verba de vários projetos de combate a malária peste bubônica meningite. Além disso, os cientistas eram a favor da criação de um Ministério de Ciência e Tecnologia, o que não interessava aos Militares. Estavam aí os ingredientes que em outros países seriam motivo de condecoração. Mas na ditadura brasileira as estruturas de poder não tinham limites nas suas arbitrariedades, e o Brasil retrocedeu décadas nas pesquisas que hoje o colocaria na lista dos principais países em produção científica na área de saúde e produção de vacinas, com reflexos nas políticas necessárias para a consolidação de um Estado de bem-estar social

Os prejuízos para a ciência brasileira advindos destas arbitrariedades só se equipararam à explosão do Veículo Lançador de Satélite brasileiro em 2003, que matou os principais cientistas daquela área de uma só vez. Os pesquisadores do IOC tiveram que fechar seus laboratórios e dispensar dezenas de jovens estudantes de mestrado e doutorado, destruindo carreiras e sonhos para sempre (Lent, 2019).

Em 1979, subiu ao poder o último presidente da ditadura: o General João Batista de Oliveira Figueiredo (1979-1985). Militar pertencente à linha dura do regime, Figueiredo foi eleito indiretamente através de um colégio eleitoral pelo partido político chamado ARENA (Aliança Renovadora Nacional), conhecido atualmente por "União Brasil", que congregava os parlamentares apoiadores da ditadura. Além da ARENA, o único partido de oposição permitido pelos militares era o Movimento Democrático Brasileiro (MDB / atual PMDB), que apesar de ter sido um partido “figurativo” naquele contexto, representava uma porta de entrada para um modelo soft de oposição. 

Naquela época, o regime militar já estava bem enfraquecido e carecia de legitimidade. Foi quando o General Figueiredo pronunciou uma de suas “célebres” frases: “Hei de fazer do Brasil uma democracia”. E de fato ele contribuiu para isso. O País, sob sua gestão, deu continuidade a uma abertura comercial lenta e gradual iniciada no governo anterior. Ato contínuo, e sob pressão intensa, o governo concedeu anistia ampla, geral e irrestrita aos exilados, permitindo a volta de estudantes, professores, políticos, artistas, intelectuais e cientistas perseguidos pela ditadura durante a vigência do AI-5, incluindo Herbert José de Souza (1935-1997), o Betinho, sociólogo brasileiro e ativista dos direitos humanos que ficou eternizado em “O Bêbado e o Equilibrista”, um clássico da música popular brasileira (MPB), com letra de Aldir Blanc (†) e melodia e harmonização de João Bosco.

Com a abertura, a população voltou a se manifestar nas ruas, principalmente entre os anos de 1983 e 1984, quando a sociedade civil se mobilizou em torno do movimento das “Diretas Já”. Foram realizados comícios em muitas capitais brasileiras como Brasília (DF), Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Salvador. Entretanto, mesmo com todo ativismo popular, prevaleceu o modelo utilizado pela ditadura; ou seja,  votação indireta pelo colégio eleitoral em detrimento da Lei Dante de Oliveira, que previa uma emenda constitucional pelas diretas. Porem, o regime militar havia perdido a legitimidade, e com o apoio da mídia comercial, a chapa composta por Tancredo Neves e José Sarney ganhou a eleição (Reis, 2010).

Dentre os vários hinos que embalaram o movimento "diretas já", destacaram-se as composições de Milton Nascimento com Fernando Brant (†) (Menestrel das Alagoas) e a música de Chico Buarque (Vai Passar), que foram ouvidas em passeatas no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais entre 1984 e 1985, todas com centenas de milhares de pessoas nas ruas.

Fig. 4. Rock In Rio 1985.
Foto: Carlos Carvalho / Agência O Globo
Finalmente, em janeiro de 1985, com a vitória de Tancredo Neves, foi organizado no Rio de Janeiro o maior festival de rock do mundo em comemoração pela vitória do presidente que "foi sem nunca ter sido" (parafraseando Dias Gomes), por ter falecido antes da posse. O Rock in Rio 1 talvez tenha sido o principal marco histórico pop do fim da ditadura no Brasil (fig. 4).

Com o fim da ditadura, os cientistas cassados de Manguinhos foram reintegrados aos seus cargos. Dos dez, este autor teve a oportunidade de ter estudado com dois deles: 1. O Dr. Hugo de Souza Lopes (1909-1991), um dos maiores entomólogos do Brasil e professor da Cadeira de Entomologia da Universidade Santa Úrsula (1988; USU - RJ); 2. O Dr. Herman Lent (1911-2004), um dos grandes helmintologistas da Fiocruz e professor da Cadeira de Helmintologia, também da USU.  Ficam aqui as minhas homenagens às memórias destes dois grandes mestres.

Obrigado pela leitura. Se quiser saber mais sobre esse tema, explore os conteúdos do blog para encontrar outros capítulos. Se gostou, curta, dê o like e me siga.

Bibliografia:

1. AGUIAR, Zenaide Neto. SUS. Sistema Único de Saúde: antecedentes, percurso, perspectivas e desafios. São Paulo: Martinare, 2011. Disponível em: Biblioteca Pearson. Acesso em: 20 de fev. 2021.

2. LENT, Herman. “O massacre de Manguinhos”. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2019. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/33216/4/Massacre_Manguinhos_2019_vers_web.pdf. Acesso em: 20 de fev. 2021.

3. JUNIOR, Aluísio Gomes da Silva; ALVES, Carla Almeida. Modelos Assistenciais em Saúde: desafios e perspectivas. In: MAROSINI, Marcia Valéria; CORBO, Ana Maria D’Andrea (org.). Modelo de atenção e a saúde da família. Rio de Janeiro: FIOCRUZ. 2007. p. 1– 5. Disponível em: https://app.uff.br/riuff/bitstream/1/8459/1/modelosassistenciaisemsa%C3%Bade.pdf. Acesso em: 20 de fev. 2021.

4. REIS, José Roberto Franco. O coração do Brasil bate nas ruas: a luta pela redemocratização do país. In: PONTE, Carlos Fidelis; FALLEIROS, Ialê. Na corda bamba de sombrinha: a saúde no fio da história. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2010. Disponível em: https://www.epsjv.fiocruz.br/publicacao/livro/na-corda-bamba-de-sombrinha-a-saude-no-fio-da-historia?fbclid=IwAR27drgpe3QCLjst9GT1a_Xn-MEscaNoGmLJOW70o2--zuVzte1mJFTsyY0

5. AROUCA, Sergio. Democracia é SaúdeIn: CONFERÊNCIA NACIONAL EM SAÚDE, 8., março de 1986, Brasília. Realização: Comissão Organizadora da 8ª Conferência Nacional de Saúde/Núcleo de Video/Fiocruz. Produção: Comissão Organizadora da 8ª Conferência Nacional de Saúde/Fiocruz. Distribuição: VideoSaúde Distribuidora da Fiocruz. Video restaurado em 2013. Publicado no canal VideoSaúde Distribuidora da Fiocruz. 1 video (42min33seg). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-_HmqWCTEeQ. Acesso em: 20 de fev. 2021.

6. D’AVILA, Cristiane. O homem que lançou as bases do Sistema Único de Saúde (SUS)In: Café História. Publicado em 07 dez de 2020. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/hesio-cordeiro-o-homem-que-lancou-as-bases-do-sus/.Acesso em: 20 de fev. 2021.

7. DIMENSTEIN, Magda Diniz Bezerra. O Psicólogo nas Unidades Básicas de Saúde: desafios para a formação e atuação profissionais. Estudos de Psicologia. Natal: v. 3, n. 1, p: 53-81, 1998. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-294X1998000100004&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em: 20 de fev. 2021.

8. SANTOS, Lenir. Região de Saúde e Suas Redes de Atenção: Modelo organizativo-sistêmico do SUS. Ciência Coletiva. Campinas: v. 22, n. 4, p. 1281-1289, 2016. Disponível em: https://www.scielosp.org/pdf/csc/2017.v22n4/1281-1289/pt. Acesso em: 20 de fev. 2021.

9. Brasil. Constituição Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 de fev. 2021.

10. GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada. São Paulo. SCHWARCZ LTDA. 2002.

11. NARVAI, Paulo Capel. Prevsaude: tragédia e farsa. CEBES. 2013. Disponível em: http://cebes.org.br/2013/12/prevsaude-tragedia-e-farsa/. Acesso em: 20 de fev. 2021.

12. PONTE, Carlos Fidelis; FALLEIROS, Ialê. Na corda bamba de sombrinha: a saúde no fio da história. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2010. Disponível em: https://www.epsjv.fiocruz.br/publicacao/livro/na-corda-bamba-de-sombrinha-a-saude-no-fio-da-historia?fbclid=IwAR27drgpe3QCLjst9GT1a_Xn-MEscaNoGmLJOW70o2--zuVzte1mJFTsyY0 

 

 Midiateca

 Mídia 1

Democracia é saúde: Pronunciamento do sanitarista Sergio Arouca durante a 8ª Conferência Nacional em Saúde

Descrição/Sinopse da mídia: 

O Sanitarista Sérgio Arouca discursa sobre a importância da reforma sanitária e sobre o conceito de saúde elaborado na VIII Conferência Nacional de Saúde.

Fonte da mídia:

http://renastonline.ensp.fiocruz.br/recursos/democracia-saude-pronunciamento-sanitarista-sergio-arouca-durante-8a-conferencia-nacional#:~:text=Nacional%20em%20Sa%C3%Bade-,Democracia%20%C3%A9%20sa%C3%Bade%3A%20Pronunciamento%20do%20sanitarista%20Sergio%20Arouca%20durante,8%C2%AA%20Confer%C3%Aancia%20Nacional%20em%20Sa%C3%Bade.

 

Mídia 2

Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS)

Descrição/Sinopse da mídia:

Histórico das Políticas Públicas de Saúde até a nova república.

Fonte da mídia:

http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/instituto-nacional-de-assistencia-medica-da-previdencia-social-inamps#:~:text=O%20Instituto%20Nacional%20de%20Assist%C3%Aancia,voltado%20para%20a%20especializa%C3%A7%C3%A3o%20e.

 

Mídia 3

O SUS em 2020. 

Descrição/Sinopse da mídia:

Debate elaborado sobre o SUS em 2020 no contexto da pandemia de Covid-19. 

Fonte da mídia:

https://www.youtube.com/watch?v=mTUJkblcdFI.




terça-feira, 17 de janeiro de 2023

 

Aves de uma paixão

Prefácio

Em dezembro de 2022 eu recebi do meu querido amigo e escritor Elísio Gomes Filho um convite honroso para prefaciar o seu último livro intitulado “Aves de uma Paixão”, sobre passarinhos, aves de rapina, galináceos e muitos outros vertebrados voadores de uma localidade histórica do Município de Cabo Frio. O Escritor Elísio é um Historiador Ambiental experimentado que já escreveu inúmeros livros sobre tragédias e naufrágios no litoral da cidade de Cabo Frio. Desta vez ele nos brindou com um compêndio sobre a avifauna desta localidade que, não por acaso, é a nossa casa. Trata-se do Condomínio Rural Fazenda da Praia (CRFP), onde temos os nossos “sítios”. Sim, aquele ambientalista veio ao meu portão confiar a mim uma importante missão.

Após o convite, retornei para o interior do meu sitio e, preocupado, me deparei com um grupo de anus-brancos fazendo uma algazarra enorme no bosque em frente a minha casa, exatamente no mesmo local onde as minhas galinhas polonesas reviravam o solo obsessivamente em busca de larvas de besouros, cupins, formigas e matéria orgânica em decomposição. Pensei: Que sensação maravilhosa poder experimentar uma vida imersa na natureza depois de tantas décadas escalando degraus acadêmicos nos territórios oprimidos das grandes cidades do Brasil. Mentalmente agradeci por isso. 

O CRFP é um lugar aonde ainda se vê Ipês, Paineiras, e a árvore mais icônica de todo o território nacional, o Pau-brasil, tão violentamente explorado pelos portugueses, franceses e holandeses, que rapinaram estas terras por mais de 300 anos.  Também tem Pau-ferro, que, com seus imponentes quase 30 metros de altura fornece uma ampla base de observação direta para o território de caça do Acauã, um falcão predador de cobras. Afora os Jatobás e muitas outras espécies, existe uma enorme variedade de leguminosas com destaque para os Flamboyants e suas esplendorosas florações multicoloridas, que formam um verdadeiro ecossistema de copa de árvore colonizado por orquídeas e bromélias de todos os tipos, que sustentam pequenos anfíbios, cobras arborícolas, primatas, gambás, e uma infinidade de insetos saborosos que se escondem por entre as cascas esfoliadas dos caules das imensas árvores, grande parte ameaçada de extinção.

Ao folhear inicialmente aquele compêndio, degustando lentamente seu conteúdo em formato de prosa lírica, entendi que aquela obra era muito maior do que apontavam seus objetivos. Falar da diversidade ornitológica do entorno do CRFP era quase o mesmo que fazer o inventário da avifauna de uma região muito maior, repleta de histórias de importância épica. Portanto, tratava-se de uma contribuição para a compreensão da realidade atual de uma das regiões de maior importância da Região dos Lagos, remanescente dos vastos campos, brejos, dunas e matas nativas desprotegidas do entorno do Parque Estadual Costa do Sol.

Em um dado momento da leitura me deparei com uma breve referencia ao ornitólogo Johan Dalgas Frisch e sua vasta obra. Levantei-me apressado em direção a minha pequena biblioteca rural para uma rápida averiguação. E sim! Lá estava ele: “Aves Brasileiras e Plantas que a Atraem” de Johan Dalgas Frisch, terceira edição lançada em 2005. 


Como se diz por aí: Agora formou! Aquele era o cara. Frisch estava para as aves assim como Augusto Ruschi para as orquídeas e o grande Bernoit Mandelbrot para os fractais. Sim, essas coisas estão interligadas e eu mesmo escrevi sobre isso no meu blog MicroSintonias: Fractais na Natureza (2009) (https://microsintonias.blogspot.com/2009/06/fractais-na-natureza.html) e;  Interface Fractal (2009) (http://microsintonias.blogspot.com/2009/05/interface-fractal.html), entre outros, basta conferir. Então estava tudo dominado e recomendado. Era só continuar a leitura.

Ainda sob o impacto conteudístico do livro, lembrei que em 2011 eu havia me transferido do Rio de Janeiro, diretamente do Bairro do Flamengo, em plena ebulição cultural dos dias ensolarados do Aterro do Flamengo e das noites boêmias da Praça São Salvador, para uma cidade provinciana e mal falada (na época), chamada Cabo Frio, no Rio de Janeiro. A despeito do rastro de surpresa impresso no imaginário dos meus amigos por eu ter deixado inconclusa minha carreira na Fiocruz, quatro anos após o meu doutoramento em ciências, hoje me deparo com os louros desta decisão ao perceber os saltos quânticos que dei ao migrar definitivamente para estes “sertões litorâneos”. Digo sertões porque, não fosse essa uma região litorânea, sertanejo seria o povo daqui, se não vejamos. Cabo Frio possui um clima misteriosamente seco, de baixa precipitação (máximo de 750 mm/ ano) tal qual ocorre no Nordeste brasileiro, limitando a região a um território estritamente semiárido, ou tropical seco, diferente do que ocorre em todo Estado do Rio de Janeiro, onde predomina um clima tropical semi-úmido, com chuvas abundantes no verão podendo ultrapassar facilmente os 1.800 mm anuais. Sim, para um biólogo como eu, toda essa dinâmica natural era encantadora e apontava para um vislumbre ainda maior sobre os inúmeros mistérios que essa terra ainda teria a desvendar.

“As aves que aqui gorjeiam” das quais se trata o livro, podem ser observadas entre os Municípios de Cabo Frio e São Pedro da Aldeia (22º47’17.95”S  42º01”43.50”O), em um território encravado entre pequenas áreas preservadas e uma ampla extensão devastada, sendo o próprio condomínio um oásis que ainda oferece alguma proteção para uma diversidade de animais que de alguma forma, sustenta uma cadeia alimentar dinâmica e em constante ameaça, pois existem muitos recortes entre as áreas não degradadas que inviabilizam o fechamento de ciclos vitais, desde a nidificação, reprodução, incubação e nascimento, até o crescimento e morte das aves que por aqui passam ou se estabelecem. 

Ao sul do Condomínio encontra-se o Parque Municipal Dormitório das Garças (10 minutos de carro), e ao norte a Reserva Florestal Tamoios (20 minutos de carro), da qual faz parte a Fazenda Campos Novos, que abrigou o naturalista inglês Charles Darwin em 1831, quando este se deparou pela primeira vez com a diversidade da floresta tropical. A Leste (25 minutos de carro), encontra-se o litoral de Búzios - RJ.

A descrição geográfica é extremamente importante, pois o leitor pode verificar a paisagem local seguindo as coordenadas pelo Google Earth Pro. Ele verá que a expansão imobiliária é altamente predatória e está extinguindo os últimos brejos característicos dos ecossistemas daqui, valiosos para a manutenção da biodiversidade de aves endêmicas e migratórias, uma vez que praticamente não existem rios nesta região. Portanto, os únicos mananciais que fornecem suporte vital para a fauna são os brejos de água doce que abrigam anfíbios, répteis, mamíferos e uma grande diversidade de aves.

A leitura agradável a que o autor nos convidou a fazer me fez ir fundo em meus delírios acadêmicos. Em um dado momento me vi na “Cabo Frio histórica”, no seu polo rural, onde, outrora, o CRFP era parte de uma rica floresta tropical repleta de trilhas por onde passavam índios, principalmente os Tamoios, em busca de caça, ou voltando de alguma colheita, ou até mesmo de algum ritual antropofágico como era de costume por estas bandas. 


Em 1831, quando a devastação colonialista já se mostrava visível, a famosa Fazenda Campos Novos, marco principal desta região, abrigou o naturalista inglês Charles Darwin, quando este se deparou pela primeira vez com a diversidade da floresta tropical e, a partir daí, abalou o mundo com a publicação de “A Origem das Espécies” em 1859. Infelizmente, o encanto de Darwin ficou comprometido ao se deparar com a dura realidade do processo colonial brasileiro calcado no escravismo cruel e predatório. Além disso, o alto nível de desflorestamento e extermínio dos índios locais o levou a escrever em seu diário, quando partia do Brasil, que esperaria jamais voltar a um país escravista.

E não era pra menos, o extermínio dos índios e o desmatamento desenfreado das florestas tropicais já ocorriam desde o período das capitanias hereditárias iniciado em 1530. Nesta época, Cabo Frio fazia parte da capitania de São Vicente, que obteve relativo sucesso frente às demais capitanias por vários motivos, e por isso, perdurou até o século XVIII. A atividade econômica diversificada, calcada na plantação de legumes, cana-de-açúcar, mandioca, feijão e milho, foi determinante para a expansão urbana da cidade, cujas maiores produções eram da fazenda Campos Novos, aqui perto, praticamente ao lado do que é hoje o CRFP

Segundo o historiador Boris Fausto, a prosperidade de São Vicente só foi possível devido ao desenvolvimento da produção de açúcar, aliado com uma política menos hostil em relação aos indígenas. Imagine então o que foram as políticas indigenistas nas demais capitanias!

A leitura deste livro me fez viajar por vários lugares e períodos históricos, evidenciando a capacidade do autor de induzir o leitor a vivenciar coletivamente a sua experiência. Portanto, darei uma pausa nos meus devaneios para que o leitor possa mergulhar também nesta mesma experiência ornitológica. Espero que este prefácio contribua para georreferenciar melhor o ambiente da narrativa, e contextualizar historicamente o CRFP, palco desta prosa.

Boa Leitura!

Waldemiro Romanha.

MD e PhD em Ciências pelo Instituto Oswaldo Cruz.

Professor Universitário.

Principais livros escritos:

·  História das Políticas Públicas de Saúde no Brasil (2022);

·  Análise de Risco Ambiental (2016).

 

sábado, 30 de novembro de 2019


Quem tem gato aí?


Se não tiver adote!

Pode parecer estranho o que vou dizer mas gato não pode ser muito alimentado não, caso contrário ele fica meio mole, gordo, preguiçoso, chatinho mesmo. Gato precisa de fome, vontade e desejo que se converte em "ballet". Gato tem que dar conta das baratas, dos ratos e até mesmo daquilo que não é da conta dele como por exemplo grilos: - Deixa o grilo viver gato sem vergonha!!! Quanta crueldade com a cigarra!!! fuja ligeiro saíra-viúva, voe para o seu ninho porque o gato dançarino quer te pegar.

Eh, o gato tem tanto de beleza quanto de feiura. Lógica paradoxal da natureza para gerar equilíbrio. O gato parado na soleira da porta parece uma esfinge fingindo saber tudo. Uma verdadeira escultura de adocicar a alma daqueles que podem pagar o preço. Onde tem gato mal se vê um passarinho. Até mesmo os beija-flores ficam mais espertos na presença deles pois não raras vezes seus corações acelerados param na voracidade felina. Mas gato não voa e isso é bom pois do contrário não poderíamos ver um ou outro padrão gênico alado voando por aí e dando conta das pressões ambientais garantidoras de gerações mais adaptadas para o bem do futuro. Bendita evolução!

Gato gosta mesmo é do chão de casa; e casa de gato é fractal. Todas as partes cheias e  vazias se configuram em espectral constituído de macros e micros ambientes repetitivos e fragmentados na dimensão infinita do seu lar. Tendo um quintal... melhor ainda, requisito este não obrigatório para criadores pois gato não se prende a portas e muros e mesmo assim sempre volta. E volta para o seu chão que pode ser, por exemplo, o sofá. O gato no sofá compõem o design, suaviza as cores, preenche os espaços (sim, nem pense em tirá-lo de lá) e te faz achar que a poltrona não seria nada sem ele. Aliás, toda poltrona deveria vir com um gato diretamente da loja.

Quando ele se aninha é como se o chão se moldasse ao seu corpo. O chão é o tapete do gato sob o qual se deita e se espreguiça uma, duas e três vezes até se desmilinguir sob uma onda de endorfinas prazerosas que percorre suas artérias relaxando cada micrômetro de músculo a um nível cibernético de deixar o queixo védico do melhor yogi caído no chão. Depois a boca se enche de saliva e uma vontade incontrolável de lamber até o mais profundo de sua alma felídea o domina. É o banho de língua dos gatos que começa sutilmente sobre a superfície do ombro, molhando os pelos até as partes baixas da barriga em uma demonstração de elasticidade que só a bailarina tem. Se tiver outro gato na jogada o ritual será compartilhado com a mesma intensidade e sem preconceito de gênero; algo incompreensível para alguns.  Pronto, fazendo assim, os gatos ficam estrategicamente inodoros e prontos para… uma soneca.


Viver com gatos não é para conservadores! Certa vez, como tantas outras vezes, eu estava na cama olhando da janela para o bosque do meu quintal. Bosque de Pau-brasil, Pau-ferro, Flamboiãs, Ipês e tantas outras variedades de encher os olhos com o verde mais diversificado que já se viu. De repente, no horizonte possível... um gavião. Sim, por ali também passam anus-brancos, sabiás, trocals, corujas, saíras, canarinhos da Terra, aves migratórias, micos e tudo mais. É caminho de Darwin, é paraíso, é Região dos Lagos, e por isso mesmo, e não por acaso, por ali também passam gaviões. 


Resultado de imagem para lince saltando





Na cena, seu voo perfeito em aproximação ao alvo já armava o bote preciso projetando suas enormes garras que, inesperadamente, chocaram-se contra o vidro da janela sob o olhar estatelado da plateia. Enquanto eu ainda tentava entender a complexidade da ação, eis que surge uma figura esbranquiça em atitude de desespreguiçamento, pronta para o salto perfeito tal qual um Lince faminto.  Seu rodopio em pleno ar preparou o pouso exigente, cravando as quatro patas no chão. Na boca um passarinho.

Ainda foi possível ver a precisão cirúrgica de seu trabalho mandibular ao posicionar quase que com afeto sádico a pequena ave em choque sob seus caninos mortais. Seus dentes em um perfeito encaixe co-evolutivo fecharam-se sobre a frágil cervical do passarinho deslocando-a suavemente e selando o triste destino da canora. E saiu andando relaxadamente por aí dando pequenos espasmos nervosos que denunciavam a sua vocação homicida. Atrás de si jaz a pequena presa sordidamente abandonada sem vida no chão. Minutos depois lá estava ele ronronando e se esfregando melosamente na minha canela como quem pede afeto para uma vida sem graça e cheia de tédio. Um amor!

Adote um gato. Você também vai amar! 
Em homenagem ao Cabeça (1999 - 2013). O gato branco no chão é o albano (protagonista da crônica). Ao lado dele a Kyra.                                                                                                                    



 
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