terça-feira, 17 de janeiro de 2023

 

Aves de uma paixão

Prefácio

Em dezembro de 2022 eu recebi do meu querido amigo e escritor Elísio Gomes Filho um convite honroso para prefaciar o seu último livro intitulado “Aves de uma Paixão”, sobre passarinhos, aves de rapina, galináceos e muitos outros vertebrados voadores de uma localidade histórica do Município de Cabo Frio. O Escritor Elísio é um Historiador Ambiental experimentado que já escreveu inúmeros livros sobre tragédias e naufrágios no litoral da cidade de Cabo Frio. Desta vez ele nos brindou com um compêndio sobre a avifauna desta localidade que, não por acaso, é a nossa casa. Trata-se do Condomínio Rural Fazenda da Praia (CRFP), onde temos os nossos “sítios”. Sim, aquele ambientalista veio ao meu portão confiar a mim uma importante missão.

Após o convite, retornei para o interior do meu sitio e, preocupado, me deparei com um grupo de anus-brancos fazendo uma algazarra enorme no bosque em frente a minha casa, exatamente no mesmo local onde as minhas galinhas polonesas reviravam o solo obsessivamente em busca de larvas de besouros, cupins, formigas e matéria orgânica em decomposição. Pensei: Que sensação maravilhosa poder experimentar uma vida imersa na natureza depois de tantas décadas escalando degraus acadêmicos nos territórios oprimidos das grandes cidades do Brasil. Mentalmente agradeci por isso. 

O CRFP é um lugar aonde ainda se vê Ipês, Paineiras, e a árvore mais icônica de todo o território nacional, o Pau-brasil, tão violentamente explorado pelos portugueses, franceses e holandeses, que rapinaram estas terras por mais de 300 anos.  Também tem Pau-ferro, que, com seus imponentes quase 30 metros de altura fornece uma ampla base de observação direta para o território de caça do Acauã, um falcão predador de cobras. Afora os Jatobás e muitas outras espécies, existe uma enorme variedade de leguminosas com destaque para os Flamboyants e suas esplendorosas florações multicoloridas, que formam um verdadeiro ecossistema de copa de árvore colonizado por orquídeas e bromélias de todos os tipos, que sustentam pequenos anfíbios, cobras arborícolas, primatas, gambás, e uma infinidade de insetos saborosos que se escondem por entre as cascas esfoliadas dos caules das imensas árvores, grande parte ameaçada de extinção.

Ao folhear inicialmente aquele compêndio, degustando lentamente seu conteúdo em formato de prosa lírica, entendi que aquela obra era muito maior do que apontavam seus objetivos. Falar da diversidade ornitológica do entorno do CRFP era quase o mesmo que fazer o inventário da avifauna de uma região muito maior, repleta de histórias de importância épica. Portanto, tratava-se de uma contribuição para a compreensão da realidade atual de uma das regiões de maior importância da Região dos Lagos, remanescente dos vastos campos, brejos, dunas e matas nativas desprotegidas do entorno do Parque Estadual Costa do Sol.

Em um dado momento da leitura me deparei com uma breve referencia ao ornitólogo Johan Dalgas Frisch e sua vasta obra. Levantei-me apressado em direção a minha pequena biblioteca rural para uma rápida averiguação. E sim! Lá estava ele: “Aves Brasileiras e Plantas que a Atraem” de Johan Dalgas Frisch, terceira edição lançada em 2005. 


Como se diz por aí: Agora formou! Aquele era o cara. Frisch estava para as aves assim como Augusto Ruschi para as orquídeas e o grande Bernoit Mandelbrot para os fractais. Sim, essas coisas estão interligadas e eu mesmo escrevi sobre isso no meu blog MicroSintonias: Fractais na Natureza (2009) (https://microsintonias.blogspot.com/2009/06/fractais-na-natureza.html) e;  Interface Fractal (2009) (http://microsintonias.blogspot.com/2009/05/interface-fractal.html), entre outros, basta conferir. Então estava tudo dominado e recomendado. Era só continuar a leitura.

Ainda sob o impacto conteudístico do livro, lembrei que em 2011 eu havia me transferido do Rio de Janeiro, diretamente do Bairro do Flamengo, em plena ebulição cultural dos dias ensolarados do Aterro do Flamengo e das noites boêmias da Praça São Salvador, para uma cidade provinciana e mal falada (na época), chamada Cabo Frio, no Rio de Janeiro. A despeito do rastro de surpresa impresso no imaginário dos meus amigos por eu ter deixado inconclusa minha carreira na Fiocruz, quatro anos após o meu doutoramento em ciências, hoje me deparo com os louros desta decisão ao perceber os saltos quânticos que dei ao migrar definitivamente para estes “sertões litorâneos”. Digo sertões porque, não fosse essa uma região litorânea, sertanejo seria o povo daqui, se não vejamos. Cabo Frio possui um clima misteriosamente seco, de baixa precipitação (máximo de 750 mm/ ano) tal qual ocorre no Nordeste brasileiro, limitando a região a um território estritamente semiárido, ou tropical seco, diferente do que ocorre em todo Estado do Rio de Janeiro, onde predomina um clima tropical semi-úmido, com chuvas abundantes no verão podendo ultrapassar facilmente os 1.800 mm anuais. Sim, para um biólogo como eu, toda essa dinâmica natural era encantadora e apontava para um vislumbre ainda maior sobre os inúmeros mistérios que essa terra ainda teria a desvendar.

“As aves que aqui gorjeiam” das quais se trata o livro, podem ser observadas entre os Municípios de Cabo Frio e São Pedro da Aldeia (22º47’17.95”S  42º01”43.50”O), em um território encravado entre pequenas áreas preservadas e uma ampla extensão devastada, sendo o próprio condomínio um oásis que ainda oferece alguma proteção para uma diversidade de animais que de alguma forma, sustenta uma cadeia alimentar dinâmica e em constante ameaça, pois existem muitos recortes entre as áreas não degradadas que inviabilizam o fechamento de ciclos vitais, desde a nidificação, reprodução, incubação e nascimento, até o crescimento e morte das aves que por aqui passam ou se estabelecem. 

Ao sul do Condomínio encontra-se o Parque Municipal Dormitório das Garças (10 minutos de carro), e ao norte a Reserva Florestal Tamoios (20 minutos de carro), da qual faz parte a Fazenda Campos Novos, que abrigou o naturalista inglês Charles Darwin em 1831, quando este se deparou pela primeira vez com a diversidade da floresta tropical. A Leste (25 minutos de carro), encontra-se o litoral de Búzios - RJ.

A descrição geográfica é extremamente importante, pois o leitor pode verificar a paisagem local seguindo as coordenadas pelo Google Earth Pro. Ele verá que a expansão imobiliária é altamente predatória e está extinguindo os últimos brejos característicos dos ecossistemas daqui, valiosos para a manutenção da biodiversidade de aves endêmicas e migratórias, uma vez que praticamente não existem rios nesta região. Portanto, os únicos mananciais que fornecem suporte vital para a fauna são os brejos de água doce que abrigam anfíbios, répteis, mamíferos e uma grande diversidade de aves.

A leitura agradável a que o autor nos convidou a fazer me fez ir fundo em meus delírios acadêmicos. Em um dado momento me vi na “Cabo Frio histórica”, no seu polo rural, onde, outrora, o CRFP era parte de uma rica floresta tropical repleta de trilhas por onde passavam índios, principalmente os Tamoios, em busca de caça, ou voltando de alguma colheita, ou até mesmo de algum ritual antropofágico como era de costume por estas bandas. 


Em 1831, quando a devastação colonialista já se mostrava visível, a famosa Fazenda Campos Novos, marco principal desta região, abrigou o naturalista inglês Charles Darwin, quando este se deparou pela primeira vez com a diversidade da floresta tropical e, a partir daí, abalou o mundo com a publicação de “A Origem das Espécies” em 1859. Infelizmente, o encanto de Darwin ficou comprometido ao se deparar com a dura realidade do processo colonial brasileiro calcado no escravismo cruel e predatório. Além disso, o alto nível de desflorestamento e extermínio dos índios locais o levou a escrever em seu diário, quando partia do Brasil, que esperaria jamais voltar a um país escravista.

E não era pra menos, o extermínio dos índios e o desmatamento desenfreado das florestas tropicais já ocorriam desde o período das capitanias hereditárias iniciado em 1530. Nesta época, Cabo Frio fazia parte da capitania de São Vicente, que obteve relativo sucesso frente às demais capitanias por vários motivos, e por isso, perdurou até o século XVIII. A atividade econômica diversificada, calcada na plantação de legumes, cana-de-açúcar, mandioca, feijão e milho, foi determinante para a expansão urbana da cidade, cujas maiores produções eram da fazenda Campos Novos, aqui perto, praticamente ao lado do que é hoje o CRFP

Segundo o historiador Boris Fausto, a prosperidade de São Vicente só foi possível devido ao desenvolvimento da produção de açúcar, aliado com uma política menos hostil em relação aos indígenas. Imagine então o que foram as políticas indigenistas nas demais capitanias!

A leitura deste livro me fez viajar por vários lugares e períodos históricos, evidenciando a capacidade do autor de induzir o leitor a vivenciar coletivamente a sua experiência. Portanto, darei uma pausa nos meus devaneios para que o leitor possa mergulhar também nesta mesma experiência ornitológica. Espero que este prefácio contribua para georreferenciar melhor o ambiente da narrativa, e contextualizar historicamente o CRFP, palco desta prosa.

Boa Leitura!

Waldemiro Romanha.

MD e PhD em Ciências pelo Instituto Oswaldo Cruz.

Professor Universitário.

Principais livros escritos:

·  História das Políticas Públicas de Saúde no Brasil (2022);

·  Análise de Risco Ambiental (2016).

 

sábado, 30 de novembro de 2019


Quem tem gato aí?


Se não tiver adote!

Pode parecer estranho o que vou dizer mas gato não pode ser muito alimentado não, caso contrário ele fica meio mole, gordo, preguiçoso, chatinho mesmo. Gato precisa de fome, vontade e desejo que se converte em "ballet". Gato tem que dar conta das baratas, dos ratos e até mesmo daquilo que não é da conta dele como por exemplo grilos: - Deixa o grilo viver gato sem vergonha!!! Quanta crueldade com a cigarra!!! fuja ligeiro saíra-viúva, voe para o seu ninho porque o gato dançarino quer te pegar.

Eh, o gato tem tanto de beleza quanto de feiura. Lógica paradoxal da natureza para gerar equilíbrio. O gato parado na soleira da porta parece uma esfinge fingindo saber tudo. Uma verdadeira escultura de adocicar a alma daqueles que podem pagar o preço. Onde tem gato mal se vê um passarinho. Até mesmo os beija-flores ficam mais espertos na presença deles pois não raras vezes seus corações acelerados param na voracidade felina. Mas gato não voa e isso é bom pois do contrário não poderíamos ver um ou outro padrão gênico alado voando por aí e dando conta das pressões ambientais garantidoras de gerações mais adaptadas para o bem do futuro. Bendita evolução!

Gato gosta mesmo é do chão de casa; e casa de gato é fractal. Todas as partes cheias e  vazias se configuram em espectral constituído de macros e micros ambientes repetitivos e fragmentados na dimensão infinita do seu lar. Tendo um quintal... melhor ainda, requisito este não obrigatório para criadores pois gato não se prende a portas e muros e mesmo assim sempre volta. E volta para o seu chão que pode ser, por exemplo, o sofá. O gato no sofá compõem o design, suaviza as cores, preenche os espaços (sim, nem pense em tirá-lo de lá) e te faz achar que a poltrona não seria nada sem ele. Aliás, toda poltrona deveria vir com um gato diretamente da loja.

Quando ele se aninha é como se o chão se moldasse ao seu corpo. O chão é o tapete do gato sob o qual se deita e se espreguiça uma, duas e três vezes até se desmilinguir sob uma onda de endorfinas prazerosas que percorre suas artérias relaxando cada micrômetro de músculo a um nível cibernético de deixar o queixo védico do melhor yogi caído no chão. Depois a boca se enche de saliva e uma vontade incontrolável de lamber até o mais profundo de sua alma felídea o domina. É o banho de língua dos gatos que começa sutilmente sobre a superfície do ombro, molhando os pelos até as partes baixas da barriga em uma demonstração de elasticidade que só a bailarina tem. Se tiver outro gato na jogada o ritual será compartilhado com a mesma intensidade e sem preconceito de gênero; algo incompreensível para alguns.  Pronto, fazendo assim, os gatos ficam estrategicamente inodoros e prontos para… uma soneca.


Viver com gatos não é para conservadores! Certa vez, como tantas outras vezes, eu estava na cama olhando da janela para o bosque do meu quintal. Bosque de Pau-brasil, Pau-ferro, Flamboiãs, Ipês e tantas outras variedades de encher os olhos com o verde mais diversificado que já se viu. De repente, no horizonte possível... um gavião. Sim, por ali também passam anus-brancos, sabiás, trocals, corujas, saíras, canarinhos da Terra, aves migratórias, micos e tudo mais. É caminho de Darwin, é paraíso, é Região dos Lagos, e por isso mesmo, e não por acaso, por ali também passam gaviões. 


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Na cena, seu voo perfeito em aproximação ao alvo já armava o bote preciso projetando suas enormes garras que, inesperadamente, chocaram-se contra o vidro da janela sob o olhar estatelado da plateia. Enquanto eu ainda tentava entender a complexidade da ação, eis que surge uma figura esbranquiça em atitude de desespreguiçamento, pronta para o salto perfeito tal qual um Lince faminto.  Seu rodopio em pleno ar preparou o pouso exigente, cravando as quatro patas no chão. Na boca um passarinho.

Ainda foi possível ver a precisão cirúrgica de seu trabalho mandibular ao posicionar quase que com afeto sádico a pequena ave em choque sob seus caninos mortais. Seus dentes em um perfeito encaixe co-evolutivo fecharam-se sobre a frágil cervical do passarinho deslocando-a suavemente e selando o triste destino da canora. E saiu andando relaxadamente por aí dando pequenos espasmos nervosos que denunciavam a sua vocação homicida. Atrás de si jaz a pequena presa sordidamente abandonada sem vida no chão. Minutos depois lá estava ele ronronando e se esfregando melosamente na minha canela como quem pede afeto para uma vida sem graça e cheia de tédio. Um amor!

Adote um gato. Você também vai amar! 
Em homenagem ao Cabeça (1999 - 2013). O gato branco no chão é o albano (protagonista da crônica). Ao lado dele a Kyra.                                                                                                                    



terça-feira, 28 de agosto de 2012

Aborto - cultura biológica


A cultura é uma construção humana produto de seleção artificial. Não tenho certeza se esta afirmação dialoga com o conceito de meme de Richard Dawkins (Dawkins, 1976, p. 197), mas se os memes são como os genes da cultura, qual seria o seu produto? Sim, para Dawkins, os memes são os genes da cultura. A despeito de Dawkins ser um biólogo de primeira linha, sabemos que o gene remete ao conceito de genótipo, ou um conjunto de nucleotídeos repetitivos que formam um polímero, que por analogia poderíamos chamar de receita de bolo ou código genético. Entretanto, a receita não é o produto. Em biologia, o gene que codifica a proteína não é a proteína, da mesma forma que a receita de bolo não é o bolo. Portanto, a proteína e o bolo podem ser chamados de fenótipos, a expressão máxima do gene da proteína e da receita de bolo. Então, será a cultura do aborto induzido um meme ou o produto do meme? O que podemos dizer é que o aborto deriva da cultura humana e expressa um meme ancestral que racionaliza aquilo que no contexto da maquinaria celular ocorreria automaticamente. 

A cultura do aborto induzido é uma sofisticação dotada de razão daquilo que foi e é o comportamento biológico de selecionar embriões viáveis e não viáveis. Optar pelo aborto pode ser entendido como uma percepção sensorial da mãe em relação ao que o seu corpo está dizendo.

Até bem pouco tempo, cerca de vinte anos ou menos, era inimaginável se discutir no Brasil questões como aborto sem que houvesse uma comoção nacional por conta de forças conservadoras acolhidas nos diversos segmentos religiosos que sempre pressionaram o Estado no sentido de sua criminalização, incluindo o aborto de fetos anencéfalos. O mesmo pode-se dizer sobre a homossexualidade e a legalização da maconha. Surpreendentemente em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por 8 a 2 parecer favorável à descriminalização do aborto de fetos anencéfalos. No rastro dessa decisão, o Conselho Federal de Medicina (CFM), após dois anos de debate interno, elaborou em 2013 um anteprojeto de reforma do código penal durante o Encontro Nacional de Conselhos de Medicina em Belém (PA). Nele, foi proposto a ampliação de situações previstas para o aborto legal incluindo, além de casos de fetos com anomalias incompatíveis com a vida, o aborto até a 12ª semana da gestação por vontade da mulher, desde que um médico ou psicólogo viessem a constatar  falta de "condições psicológicas". Percebe-se aí um importante recado de entidades Brasileiras a respeito do aborto ao qual podemos acrescentar a seguinte pergunta. Estaremos nós, brasileiros, preparados para enfrentar a questão do aborto a partir de uma premissa libertária como se espera de um Estado Democrático de Direito, a exemplo do que fizeram vários países da Europa e os Estados Unidos? A questão sobre ser ou não a favor do aborto não se esgotará com a sua descriminalização, caso isso venha a acontecer, mas a colocará dentro de um fórum mais apropriado do que as delegacias de polícia, onde, pelos resultados encontrados, tem se mostrado totalmente ineficaz e inadequado para conter a verdadeira epidemia abortiva que contribui também para a alta mortalidade de mulheres no Brasil.

É consenso entre a maioria dos Biólogos do Desenvolvimento e     Médicos que os fetos não possuem as conexões nervosas necessárias para que o haja a percepção da dor antes da décima segunda semana de vida, e que o córtex cerebral, que difere o homem dos demais animais, só estará totalmente formado na quadragésima semana de vida. Para nós, estes dados justificam a decisão do CFM quanto à data limite para a realização legal do aborto no Brasil até a décima segunda semana. Em relação à decisão do STF, acredita-se que fetos anencéfalos correspondem a um quadro semelhante àqueles em que um paciente é dado com morto a partir de um diagnóstico de morte Neurológica. Segundo PENNA (2005), em ampla revisão sobre o assunto, o feto anencefálico é um feto morto, incapaz de sentir dor, ver, ouvir ou sentir qualquer tipo de sensação, ainda que, em muitos casos, seu coração seja capaz de bombear sangue para o corpo por algumas horas ou até mesmo dias após o nascimento. Destaca-se o fato de que, ainda que a gravidez seja levada a termo, este feto não terá um segundo de consciência ou experimentar sensações, não havendo potencialidade de se tornar uma pessoa. O motivo seria a ausência do córtex cerebral, independente da presença de um tronco encefálico "viável". 
           
Em busca de uma visão ampliada.

Nos ambientes selvagens, desde a pré-história até aproximadamente quatro mil AC, a natureza sempre teve o controle do tamanho das diferentes populações interagentes nos ecossistemas saudáveis. Hoje, com o desenvolvimento das sociedades modernas, sabe-se que entre os limites que determinam o sucesso de uma civilização está a obrigatoriedade de manter os níveis de produção de alimentos acima das suas necessidades de consumo. Qualquer ruído que perturbe essa relação significará desnutrição severa ou fome para milhões de seres humanos. Então estamos falando de  guerras, desastres naturais ou até mesmo epidemias.
           
Muitos fatores contribuem para que esses limites sejam ultrapassados tais como os avanços da medicina curativa e preventiva que aumentam a longevidade, bem como restrições legais e "morais" que engessam o direito das mulheres de dar continuidade ou não a uma gravidez desejada ou indesejada. Também contribui para isso mecanismos tecno/biomédicos que viabilizam o nascimento de seres humanos mal formados, que, em ambientes naturais, não culturais e, portanto, regulados pelas leis da seleção sexual/natural, seriam abortados.
          
Cabe neste momento dizer que os eventos naturais não são dotados de valores morais ou éticos e a morte é tão natural quanto a vida. A sociedade, que é produto da engenhosidade do cérebro humano, rejeita a morte e cultua a vida. E é natural que seja assim. Entretanto, na natureza o aborto é apenas mais um dos mecanismos de controle populacional, ainda que tal mecanismo também vise a manutenção e aperfeiçoamento de um padrão genético que vem dando parcialmente certo. Nas plantas, a seleção sexual pode ocorrer em alguns momentos tais como: 1) durante a polinização através da competição entre os grãos de pólen pelo óvulo; 2) durante a fertilização dos óvulos no qual os grãos de pólen são selecionados pelas partes femininas das plantas e; 3) durante o desenvolvimento dos embriões no qual ocorre direcionamento seletivo de nutrientes por parte da flor para diferentes embriões (Wilson, 1994). Como resultado, pode-se ter ou a maturação seletiva ou o aborto de embriões devido a diferenças na qualidade genética dos doadores de grãos de pólen e do investimento nutricional materno (Melser & Klinkhamer 2001).
           
Em humanos, mais ou menos 20% de toda gravidez termina em aborto espontâneo durante as primeiras 16 semanas. A maior parte ocorre quando os cromossomos dos espermatozoides encontram com os cromossomos do óvulo. 

Muitas vezes o embrião ou feto apresenta desenvolvimento incompleto ou anormal. Nestes casos, o corpo rejeita o embrião expelindo-o. Não interessa para a natureza experimentos mal sucedidos sob o risco de comprometer a deriva natural dos genes que levaram ao sucesso da espécie humana. Com o advento da medicina, casos que poderiam evoluir para um aborto espontâneo são revertidos redundando, eventualmente, no nascimento de crianças mal formadas ou com comprometimento genético severo. Sociologicamente não devemos pensar no aborto induzido como uma ferramenta de aperfeiçoamento genético ou como um método de controle de densidade populacional, mas como um mecanismo natural de funcionamento da psique humana expressando uma necessidade individual, no limite do racional e do instinto, que leva a uma tomada de decisão voltada para a expulsão do feto por motivos pessoais, mas que implica em repercussões ecológicas globais já que 40% dos gestações culminam em aborto. O aborto não é contra a natureza visto que tem um papel ecológico. Então devemos ver o desejo de uma gestante de não sustentar uma gravidez como uma lógica ecossistêmica onde a razão é apenas o seu mais novo mecanismo.
       
Vários são os argumentos contra e a favor do aborto, podendo-se distinguir várias correntes de pensamento tais como a "Pró-vida" (contra) e a "Pró-escolha" (a favor). Entretanto, não são apenas posturas a favor ou contra ao aborto que me impõe o desafio de escrever este texto, mas a necessidade de entender a aparente contradição entre a biologia e antropologia no que diz respeito à cultura e ao comportamento, especificamente no ponto onde se estabelece a fronteira entre o que é de ordem natural (biológico) e artificial (cultural). Será que existe de fato essa diferença? Acredito que a resposta a esta pergunta já tenha sido dada.

Noções básicas sobre a dinâmica de populações


Tudo, dentro de um contexto das relações interespecíficas observadas e sentidas na dinâmica natural do nosso planeta, está subordinado às leis gerais e fundamentais encontradas nos domínios da física, química e biologia. A biologia é a ciência menos fundamental e a mais complexa entre todas uma vez que não lida com as dimensões atômicas ou das partículas subatômicas mas no contexto das células, tecidos, organismos e comportamento. Ou seja, organizações de diferentes níveis hierárquicos melhor entendidas no âmbito de subáreas como a ecologia e a neurociência.

Viver é uma condição ecológica e sistêmica, onde cada componente do grande sistema está inserido em um determinado domínio ecossistêmico ou nicho. Faz parte desta realidade um controle fino da estabilidade das populações nos sistemas. 


Se pensarmos nas populações humanas como entidades estruturadas, certas características devem ser consideradas, tais como:

1. Densidade,
2. Taxas de natalidade e mortalidade,
3.Características genéticas (adaptação e habilidade reprodutiva).

Estas são algumas das principais características de uma população e delas depende a sua sustentabilidade, ou seja, a manutenção da identidade molecular dos seus componentes e o ajustamento às condições do meio dada a capacidade dos sistemas em selecionar negativamente (aborto) padrões nitidamente distintos de comportamento, garantindo uma melhor adaptação individual e coletiva ao ambiente. Então, o determinismo genético evoluiu inclusive para que as espécies tenham qualidade de vida. O pensamento de Richard Dawkins nos faz entender que fazer o bem não é uma questão de crença ou valores, mas uma condição de existência das populações que coevoluem e estabelecem padrões de convívio harmônico. Temos este impulso coletivo. Tal condição elimina desajustes que causam rupturas sociais. Então fazer o bem é da natureza humana e uma condição para a evolução das sociedades.
            Os componentes naturais estão sujeitos às condições iniciais encontradas em cada momento da sua dinâmica sistêmica, respondendo coletivamente a estímulos ou "ruídos" que, eventualmente, perturbem seu frágil equilíbrio. A depender do caso, rupturas no comportamento padrão não são toleradas. Esta resposta é determinada geneticamente em conjunto com a dinâmica das relações a que estão submetidos os organismos no ambiente. Assim, os organismos moldam o ambiente e o ambiente molda os organismos (Hipótese de Gaia). Senão vejamos: A camada de ozônio não existiria sem atividade fotossintética das algas marinhas e das plantas uma vez que o ozônio (O3) é formado a partir do oxigênio (O2) produzido pelas algas. Também não haveria nuvens se não fosse a atividade metabólica das algas planctônicas que vivem nos oceanos e nas grandes bacias fluviais. Estas produzem uma substância chamada dimetil-sulfeto sem a qual as nuvens não seriam formadas (Odum & Barret, 2007). Da mesma forma que não é possível a existência da vida como a conhecemos sem a camada de ozônio, a camada de ozônio não seria possível sem a vida na terra. Ou seja, para a microbiologista americana Lynn Margulis a vida na Terra cria as condições para a sua própria sobrevivência, e não o contrário, como as teorias tradicionais sugerem (Margulis & Stamp; Sagan, 2002).

Não existem aí fenômenos místicos ou algo parecido. Não foi a vida que evoluiu para se adaptar às condições na Terra, em vez disso, os organismos desde o início, desempenharam controle de um ambiente geoquímico que lhes fosse favorável. Algo parecido pode ser dito sobre a cultura e o comportamento. A humanidade como a conhecemos não pode existir sem cultura bem como não haverá cultura tal qual conhecemos fora da espécie humana.

O sucesso evolutivo que levou à emergência do homem moderno derivou da sofisticação gradativa de códigos genéticos comprometidos com a manutenção da espécie através da expressão de mecanismos eficientes de caça, acasalamento e reprodução. A cultura deriva do comportamento. Uma bactéria tem um tipo comportamento, um primata comporta-se como primata ainda que possamos observar a presença de elementos culturais tais como a utilização de ferramentas rústicas para a realização de certas tarefas.


 É consenso na Antropologia e na Filosofia que os fenômenos culturais são práticas sociais artificiais (não naturais) aprendidas por meio da vida em sociedade à medida que as árvores genealógicas se ramificam (Kroeber, 1949). Estão incluídas aí as crenças, a arte, a moral, as leis, os costumes e todos os outros hábitos e aptidões adquiridos pelo homem como membro da sociedade (Tylor, 1832). Contraditoriamente, sabe-se que expressões culturais podem gerar mecanismos adaptativos mais rapidamente que a evolução biológica. Por exemplo, a adaptação ao uso de roupas, fogo e habitações permitiu ao homem a conquista de territórios inóspitos que, de outra maneira, só seria possível com o aparecimento de caracteres evolutivos tais como longas pelagens e grossas camadas de gordura, como no caso dos ursos e outros animais polares. Então a cultura interfere nos processos puramente comportamentais adquiridos na evolução gerando uma propriedade emergente.

Podemos entender então que a cultura subverte o comportamento básico humano travestindo-o de crenças e demandas criativas. Nem por isso é menos importante que a evolução biológica para o sucesso adaptativo que experimentamos agora. O desenvolvimento gradativo da linguagem certamente foi a principal força motriz para o surgimento da cultura, um processo que durou quatro milhões de anos, o equivalente à toda Pré-História humana, durante os períodos Paleolítico e Neolítico. Assim, concomitante com o aumento gradativo do encéfalo observado desde os Australopithecus até o Homo sapiens moderno (Greif, S. 2007), nossa capacidade de comunicação e cognição foram se aperfeiçoando até o surgimento da escrita, finalizando a pré-história e dando início à história humana. Do ponto de vista anatômico sabe-se que a principal diferença entre o cérebro de macacos e de seres humanos é a grande proeminência das áreas pré-frontais humanas.

Com a evolução cultural acelerada inicia-se um período de ações antropogênicas onde as intervenções inevitáveis nos processos naturais levaram ao surgimento e declínio de inúmeras civilizações. A interferência humana nos processos naturais em muitos casos trouxe consequências desastrosas, se não vejamos. O crescimento populacional decorreu de processos culturais tais como o domínio da terra na emergência da agricultura e a domesticação de animais, fixando o homem em aldeamentos, como demonstrados em resíduos arqueológicos encontrados em certas populações humanas da península ibérica em períodos de 20 mil anos atrás ou até mais. Isso pode ser observado em vários territórios no globo terrestre com idades geológicas variáveis. 

A evolução tecnológica e médica realçaram nosso apego cultural à vida culminando com métodos que levaram ao aumento da expectativa de vida e, consequentemente ao aumento populacional nas cidades modernas. O aborto como mecanismo natural de controle populacional e manutenção da qualidade genética da espécie ainda cumpre o seu papel apesar das pressões contraculturais e, portanto, anti naturais. A alta mortalidade de mulheres que procuram clínicas clandestinas de aborto, junto com o nascimento de crianças não desejadas compromete o curso natural da evolução que pressupõe o equilíbrio das relações sociais dado pelos padrões de comportamento herdados. Isto parece ser parcialmente consistente com os dados analisados pelos     professores 
Lewitt, da Universidade de Chicago, em Ilinois, John Donohue III, da Steven Universidade Stanford, na Califórnia. Segundo eles, a liberação do aborto, em 1973, foi determinante na redução da criminalidade a partir de 1990 devido à diminuição de filhos indesejados. Existem estatísticas que indicam que 50% dos crimes nos EUA são realizados por jovens produtos de gravidez indesejada. Estudos mostram que os Estados norte-americanos que legalizaram o aborto mais cedo reduziram as taxas de criminalidade antes. Os estudos concluem demonstrando que onde o índice de aborto foi mais alto a criminalidade caiu mais. No Brasil, nada menos que 43% das crianças nascidas são indesejadas (Vergara, 2001).
A essa altura já deve estar claro que a evolução cultural não é boa nem ruim, tal qual a evolução biológica. É apenas dinâmica, mutável e pragmática. Ambas são produtos de um mesmo processo. Satisfaz aos anseios de uma dada comunidade em um dado tempo e espaço e se dissipam posteriormente. Conceitos como ética e moral são flutuantes e perenes pois as sociedades estão em constante evolução. Isto é do determinismo genético, que também está em constante evolução. Trata-se de um conflito circular ou complexidade circular tal qual descrito por Edgar Morin. Traduzindo para os nossos termos podemos dizer que a evolução biológica molda a cultura e a cultura molda a evolução biológica.  Este princípio sociológico tem sempre culminado por um lado, em declínio de civilizações e extinção biológica, por outro, com o surgimento de novos impérios ou potências culturais. 

            Para concluir, entendemos que fenômenos culturais existem em consequência da evolução da cognição. Um molda o outro. Ser a favor ou contra ao aborto está de acordo com o princípio da diversidade cultural e biológica. O aborto ajuda a manter a sociedade no limite de sua capacidade de sustentação sem o qual entraríamos em colapso. Os eventos puramente comportamentais não são dotados de valores morais ou éticos e a morte é tão natural como a vida. Culturalmente estabelecemos um lugar ético para conflitos de ordem puramente biológica ou comportamental com os quais nos deparamos. A sociedade, que é produto da engenhosidade humana, rejeita a morte e cultua a vida. É natural que seja assim. Entretanto, na natureza o aborto é apenas mais um dos mecanismos de controle populacional e manutenção de um padrão genético que vem dando parcialmente certo. Culturalmente, as instituições respondem pelo tipo de sociedade que queremos e o desafio que a questão do aborto nos impõe hoje é de ordem espacial, ou seja, polícia versus saúde pública.

A verdadeira ação antropogênica predatória é aquela que não respeita a natureza humana, portanto, o valor da autonomia da mulher, da saúde enquanto processo (CANGUILHEM; CAPONI apud BRÊTAS e BAMBA, 2006), e do direito a escolha. Como dissemos no início deste artigo, acreditamos que a questão sobre ser ou não a favor do aborto não se esgotará com a sua descriminalização, mas a colocará dentro de um fórum mais apropriado do que as delegacias de polícia, onde, pelos resultados encontrados, tem se mostrado totalmente ineficazes e inadequadas para conter a verdadeira epidemia abortiva que contribui principalmente para a alta mortalidade de mulheres no Brasil.
Até a próxima postagem em "a dor da minhoca".

quinta-feira, 22 de julho de 2010

"Ecossistemas de Menger"

O conceito sobre complexidade biológica tal qual exposto nos artigos “embriologia fractal do mesozoico” e “interface fractal”, e reconstruído aqui, introduz o “ressignificado” de ecossistema e dimensão fractal. Interessa-nos neste e nos próximos artigos reforçar a ideia de seres vivos ou ecossistemas como sistemas complexos biológicos com dinâmica fractal.

Os sistemas naturais são formados por componentes que estabelecem entre si relações intra e interespecíficas. Essas relações não são lineares e por isso mesmo desprovidas de sentido vetorial ou direção claramente previsível. Isto é mais evidente em micro escalas (tema para outro texto). Assim, os sistemas naturais são imprevisíveis e mutáveis mas não obrigatoriamente instáveis. A melhor imagem para representar a complexidade dos ecossistemas é a de uma rede cujos os nós representam os componentes do sistema, e as linhas que comunicam os nós, representam os sentidos ou as direções das informações que circulam pela rede. Entretanto, trata-se de uma rede quadrimensional (ou n-dimensional) que configura uma  intrincada malha de conexões com design biológico próprio, mutável, e mais do que provavelmente, fractal. Ou seja, cada componente ou nó do sistema representaria uma rede em menor escala, sustentável, autossimilar, tendendo ao infinito. Assim, cada nó da rede, de forma aparentemente sólida,  seria semelhante a uma esponja com área de superfície infinita e volume nulo (vide Esponja de Menger acima).

Este conceito sugere uma estrutura organizada no qual os sistemas observados em macro escala suportam subsistemas em escalas progressivamente menores. A observação detalhada dos subsistemas revela instâncias ainda menores e de complexidade semelhante. Alterações em qualquer nível refletem alterações a nível global.

Vamos imaginar o bioma Mata Atlântica presente na maior parte no território brasileiro. Este grande sistema é composto por vários ecossistemas diferentes, entre eles as florestas atlânticas. Na Mata Atlântica distinguem-se no mínimo quatro tipos de florestas além de mangues, restingas, campos e brejos de altitude. Esta configuração corresponde a ecossistemas dentro de ecossistemas em escalas progressivamente menores. Nestas florestas ou ecossistemas, comuns no Rio de Janeiro, predominam Jequitibás (ao lado), Ipês, Jacarandás, Palmeiras, Leguminosas, Astroniuns, Sapucaias entre centenas de outras espécies lenhosas, arbustivas, trepadeiras e epífitas como as orquídeas e bromélias. Além de toda a diversidade vegetal, circulam nestes ecossistemas uma grande diversidade de animais que realizam os seus ciclos de vida por entre territórios delimitados e/ ou  superpostos dentro do grande ecossistema complexo chamado Mata Atlântica. Entre eles podemos destacar primatas, felinos, aves, tamanduás, insetos, cobras, jacarés, sapos entre outros.

Dentro de um conceito ampliado do que seja ecossistema, podemos distinguir micro ecossistemas presentes nas copas das árvores, nas cascas das árvores ou nos cálices das bromélias, entre outros. Os cálices das bromélias são importantes na natureza e são vistos pela maioria dos ecólogos como ecossistemas completos. Então, vamos aprofundar o entendimento sobre estes micro ecossistemas de bromélias como exemplos de componentes vitais para o funcionamento e entendimento dos nossos ecossistemas interligados em rede complexa com dinâmica fractal.

Existem mais de duas mil espécies de bromélias no mundo. Para alguns autores este número pode chegar a três mil conforme relatado no ótimo livro "Bromélias da Mata Atlântica" de Elton M. C. Leme. Segundo Leme, pelo menos 40% desse universo podem ser encontrados no Brasil, o que faz do país o mais importante em termos de diversidade.

Cada bromélia tem uma capacidade especial de armazenar água em suas folhas e é aí que está o segredo. Esta água é, geralmente, límpida e transparente, e fica armazenada entre as folhas bem no centro da planta chamada de cálice. A água das bromélias é rica em sais minerais, ácidos orgânicos e outros nutrientes que fazem das bromélias micro ecossistemas fundamentais dos quais dependem centenas de organismos. Além das famosas larvas de mosquitos, dentro ou em torno das bromélias vivem libélulas, aranhas (como a caranguejeira Pachistopelma rufonigrun endêmica de bromélia retratada na imagem abaixo), sapos, pererecas, aves, morcegos, cobras e crustáceos. São 400 a 500 espécies de animais que estão de alguma forma relacionadas às bromélias. Muitas fazem das plantas sua moradia. Outras as frequentam para caçar, beber ou apenas molhar a pele. Outras ainda as polinizam ou buscam seu néctar e frutos. No calor das restingas ou no auge da seca do sertão nordestino, dos cerrados e das matas do Centro-Sul brasileiro, as bromélias também são fonte de água para anfíbios e répteis, aves e até mesmo mamíferos, como saguis, micos, macacos, cachorros-do-mato e quatis.

A melhor imagem que tenho das bromélias interagindo em ecossistemas foi impressa na minha mente a partir de um trabalho que realizei durante a faculdade de Biologia, na restinga de Massambaba - RJ. Era um marimbondo caçador buscando atividade em torno de uma Edmundoa lindenii em flor (a baixo sem o marimbondo). Recentemente tive um grande problema com larvas de Aedes aegypti (mosquito vetor do vírus da dengue) nas bromélias do jardim da Universidade Veiga de Almeida em Cabo Frio. O problema foi resolvido com treinamento dos funcionários na eliminação das larvas e dos ovos dos mosquitos bem como de outros criadouros realmente importantes.

Imagine uma floresta ou restinga sem bromélias. Em ambientes de restinga, às vezes as bromélias são os únicos suprimentos de água doce disponível para pequenos animais, sendo capazes de armazenar o equivalente a um copo ou um balde cheio de água a depender do tamanho da bromélia. A eliminação destas plantas impactaria toda a diversidade taxonômica gerando um colapso em todo o grande ecossistema, alterando inclusive o microclima, uma vez que as bromélias são fundamentais para a regulação do mesmo. Então, podemos enxergar as bromélias como importantes bioindicadores da saúde de ecossistemas tropicais.

Como pudemos ver, as bromélias são bons exemplos de componentes pertencentes a grandes redes de ecossistemas que ajudam na manutenção de todo o sistema. Redes fractais como modelos de sistemas naturais são ideias matemáticas úteis que ajudam a explicar fenômenos biológicos observáveis. Entretanto, como poderíamos desenhar esta rede? Que geometria fractal poderia representar tamanha interação de modo que na sua arquitetura tivéssemos um tipo de Esponja de Menger diferenciada para cada subsistema interligado em rede? Nesse ponto a interação entre biólogos, físicos e matemáticos poderia ser útil na construção desta representação gráfica para este hipotético "Ecossistema de Menger". O ecossistema artificial de Menger seria suportado por algoritmos que, por sua vez, estariam baseados em proposições matemáticas. Então, estamos falando de modelos matemáticos formados por parâmetros e variáveis. Tais parâmetros e variáveis seriam representações numéricas dos componentes dos ecossistemas reais. Alterações nos parâmetros do modelo gerariam modificações na arquitetura gráfica do ecossistema artificial de Menger. Isto significaria uma ferramenta poderosa para o estudo in sílica de ecossistemas alterados ou impactados.

Quem aceita o desafio de modelar os "Ecossistemas de Menger"?

Grande abraço e até a próxima.

sábado, 14 de novembro de 2009

Introdução à complexidade biológica

Encontros e mudanças

A vida surgiu de um pequeno sistema singular adaptativo e cheio de potencial transformador, dotado de complexidade suficiente para se replicar em novas formas replicantes. Um sistema capaz de gerar toda a diversidade biológica encontrada hoje e com plasticidade suficiente para se diferenciar nos mais diversos tipos de tecidos componentes dos vertebrados ditos superiores: A célula. Surgida provavelmente há mais de três bilhões de anos em ambientes lamacentos ou mares rasos e quentes do Pré-cambriano, ali viveu e evoluiu por milhões de anos tal qual vivem e evoluem muitos organismos unicelulares como bactérias e protozoários que são encontrados até hoje nas bordas das lagoas poluídas como as de Araruama em Cabo Frio RJ, e tantas outras por esse Brasil afora.


Desde o advento da vida, tudo mais foi encontro e mudança. Pude promover um desses encontros entre alunos universitários e microrganismos planctônicos em laboratório. Foi simples: a partir de uma rápida ida ao campo, o material foi coletado, preparado e exposto em sistema fechado de vídeo-microscopia. Bastou apenas um fragmento de ecossistema encontrado em uma gota de água poluída cuidadosamente coletada para que a natureza se expressasse com todas as suas cores e diversidade biológica bem na nossa frente. A diversidade biológica estampada em alguns monitores de televisão e o espanto da espécie dominante frente ao inimaginável. Um encontro transformador com força suficiente para mudar perspectivas e alterar caminhos daqueles que curtem a natureza.

Sem misticismo, a ciência nos leva a uma reflexão sobre a origem comum dos seres e nos coloca na dimensão da matéria como qualquer outro ser vivo. Ou seja, os organismos coevoluem vivendo juntos na natureza e se diversificam a partir dos encontros quer sejam sexuais, cognitivos, parasitários ou simbiônticos, gerando a enorme diversidade biológica observada. Essa diversidade é dependente do ambiente e por isso mesmo se apresenta diferente em cada diferente local.


Isso me fez lembrar de um dos meus grandes momentos na Biologia. Foi em 1981, aos 15 anos de idade, dentro de uma sala de aula de ensino fundamental e público, estudando a diversidade da fauna marinha apresentada sobre a bancada do laboratório de biologia pela professora de ciências. Era a primeira vez que, hipnotizado, eu observava a complexidade dos tentáculos de uma lula, a disposição das escamas das diversas espécies de peixes e o admirável exoesqueleto dos crustáceos marinhos. Isso foi em Resende - RJ.


Antes disso, minha experiência no campo da biologia era totalmente empírica baseada em aventuras vividas em Brasília na minha pré-adolescência. Naquele ambiente de cerrado, experimentei acampamentos, pescarias e trilhas onde era possível ver, livres na natureza, animais silvestres como: emas, tatus e até mesmo lobos Guará, entre muitos outros tipos de animais vertebrados terrestres e aquáticos. Infelizmente, nunca tive a sorte de encontrar uma onça-pintada, vista ainda em quantidade significativa nas zonas menos povoadas, como no Parque Nacional da Chapada dos Viadeiros.

Quando me mudei para o Sul do Estado do Rio de Janeiro, me surpreendi com aquele novo encontro. Fiquei emocionado ao ver pela primeira vez no Município de Itatiaia, bem na divisa com o Estado de São Paulo, o Maciço de Itatiaia, uma enorme rocha cujo ponto mais alto é chamado de Pico das Agulhas Negras.
Era o máximo do contraste entre dois ecossistemas. De um lado o cerrado de Brasília, o segundo maior bioma do Brasil, com suas árvores retorcidas, estações seca e chuvosa bem definidas (clima tropical semi-úmido) e uma "umidade relativa do ar" as vezes abaixo de 25%, com sol escaldante de dia e “muito” frio durante a noite. Por outro lado, a umidade chuvosa de Resende, cidade encravada em uma imensa bacia sedimentar e cortada por um Rio magnífico chamado de Paraíba do Sul que, com seus braços, hidratam imensos vales onde se desenvolve e evolui uma rica e diversa fauna e flora típicas de Mata Atlântica. Seus vales e florestas formados a partir de levantamentos rochosos como os da Serra da Mantiqueira estão hoje protegidos pelo Parque Nacional de Itatiaia, o primeiro do Brasil, com latitudes que variam de 580 a 2.787 metros.

Uma vez fazendo uma escalada pelas muitas vias do Itatiaia, fui apresentado por um amigo estudante de biologia a um líquen, forma de vida extremamente curiosa, constituída pela simbiose entre fungos e algas e capaz de se adaptar a regiões inóspitas do tipo “costão rochoso”, tal qual aquele em que estávamos pendurados apenas por um cabo. Ali, ele me explicou que as algas eram as responsáveis pela fotossíntese no sistema simbiôntico, sem a qual não poderiam sobreviver como líquen. Fiquei sabendo que os liquens faziam parte do ecossistema e que sua conservação era importante para a conservação de todo o sistema. Comecei a entender que os sistemas estavam todos inter-relacionados, desde as formas mais simples até as mais complexas.


Um bom exemplo de inter-relação são as formigas nos parques de Moscou, Rússia. Lá, em 2006, descobriu-se uma relação entre o adoecimento das árvores e o desaparecimento de um determinado tipo de formiga dominante daquele lugar. O motivo era relativamente simples. O suprimento de alimento das formigas estava diminuindo devido ao trabalho da limpeza feito pela prefeitura, causando impacto sobre as mesmas. Sabe-se que algumas espécies  de formigas  são úteis aos ecossistemas por predarem parasitos de plantas, como no caso das formigas Russas.  Além disso, com a diminuição da população de formigas, houve um aumento na população de lagartos, outro tipo de alimento dessas formigas. Assim, sem o controle da população de lagartos,  a taxa de natalidade aumentou vertiginosamente e as copas dos carvalhos, alamos, tílias e bétulas foram devoradas, contribuindo para a morte da floresta. Considerando que cada formigueiro com um milhão de indivíduos (número limite) é capaz de manter uma área de 10 mil metros quadrados livre de pragas, a conservação das formigas é vital para qualquer parque ou floresta (ANSA 10/10/2006 11:58)

Este e outros exemplos mostram que o equilíbrio dos sistemas biológicos depende das relações entre as diferentes espécies. Alterações em algum nível pode repercutir desequilíbrios de amplo espectro. Entretanto, todos os seres vivos ou mesmo ecossistemas inteiros sofrem alterações ao longo do tempo, quer sejam por interferência humana ou da própria dinâmica natural. Algumas alterações são positivas e permitem que os seres saltem para novos estados de maturidade com o próprio meio. Outras podem levar ao desaparecimento de todo um ecossistema. Assim, as coisas existem em equilíbrio dinâmico, modificando-se a partir das interações entre si ao longo do tempo. Quer seja um líquen, um passarinho, seres humanos ou uma floresta, todos passam por um estado embrionário, amadurecem e se transformam ao longo dos seus encontros ou interações naturais. Eu mesmo mudei desde o tempo em que, pendurado em uma rocha do maciço de Itatiaia, tive um encontro com um líquen.

Abraços e até breve.
 
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