As preocupações com a saúde neste período não estavam relacionadas com a dignidade humana ou mesmo com as lutas por direitos de acesso aos bens de consumo da classe trabalhadora, mas com os interesses econômicos das oligarquias em manter os trabalhadores em condições “adequadas” de saúde visando a estabilidade da produção agrária (Nunes, 2000). Ou seja, o velho conceito da racionalização extrema da produção de trabalho advindo dos métodos de Frederick Taylor (1856-1915) reinava enquanto fundamento pseudocientífico para justificar a produção em cadeia na indústria do café.
Neste contexto, a despeito de todos os avanços científicos/microbiológicos em progresso nos países centrais, o homem era visto como um componente de uma grande engrenagem que não podia parar. Este modelo de política econômica trazia como consequência uma política da saúde voltada para a doença e não para as suas causas.
O modelo era curativo e não preventivo!
Por isso mesmo, a epidemia de febre amarela que havia começado em 1850 no Rio de Janeiro atingiu grande parte da zona cafeicultora de Campinas e Sorocaba (SP) em 1889, gerando prejuízos incalculáveis para a economia do País uma vez que os mais vulneráveis eram os trabalhadores do campo, principalmente imigrantes contratados para substituir a mão de obra escrava que havia sido abolida em 13 de maio de 1888, ano anterior à proclamação da república.
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Fig. 1. Enfermaria provisória da Escola Benjamin Constant no Rio de Janeiro em 1918. |
Em termos gerais, no início do século XX, o quadro epidêmico do Rio de Janeiro retratava uma cidade insalubre e assolada por uma série de doenças que variavam entre varíola, peste bubônica e febre amarela (fig. 1). Em 1902, o recém-eleito presidente do Brasil Rodrigues Alves (1848 -1919), inspirado no modelo francês de medicina urbana, liderou um movimento de saneamento que permitiu abrir grandes avenidas no centro do Rio e expulsar para as periferias insalubres, as populações empobrecidas que habitavam os cortiços e os quartos de aluguel.
Um pouco antes, em 1899, um jovem médico e cientista chamado Oswaldo Cruz (fig. 2) retornara de um dos maiores centros de pesquisa em microbiologia do mundo, o Instituto Pasteur, onde havia estagiado com o biólogo russo Ilya Mechnikov, ganhador do prêmio Nobel de fisiologia (1908) por seus trabalhos em imunologia, e Émile Roux, médico descobridor do soro antidiftérico e diretor do mesmo Instituto.
Após uma rápida passagem por Santos (SP) onde ajudou a debelar a Peste Bubônica, Oswaldo Cruz foi convidado pelo Barão de Pedro Afonso, por indicação de Émile Roux, para dirigir o recém fundado Instituto Soroterápico Nacional, na fazenda de Manguinhos, transformando-o em um importante centro de pesquisa básica e produção de vacina. Posteriormente, após a posse de Rodrigues Alves, Oswaldo Cruz (imagem) foi nomeado Diretor-Geral da Saúde Pública (DGSP), algo como um Ministro da Saúde de hoje, a fim de erradicar três epidemias simultaneamente: Peste Bubônica, Varíola e Febre Amarela.
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Fig. 2. Oswaldo Cruz no Instituto Pasteur. |
Os feitos notáveis de Oswaldo Cruz lhe renderam inúmeros prêmios mas também algumas crises institucionais como a Revolta da Vacina em 1904. Nesta época houve uma dissonância entre a população e a forma autoritária com que Oswaldo Cruz comandou a campanha de vacinação contra a varíola. O modelo propiciou abusos por parte de agentes higienistas que invadiram casas, assediaram mulheres e crianças vacinando-as à força e gerando uma grande revolta popular que foi debelada com violência pelo governo. Na verdade, a revolta da vacina se estendeu para uma série de pautas direcionadas ao desemprego, exclusão social, moradia, inflação, lockdown e todos os tipos de mazelas a que os brasileiros estavam submetidos e que as elites haviam normalizado. Curiosamente, em 1908, a população foi surpreendida por uma nova epidemia de varíola, e ao contrário do que se esperava, os cidadãos demonstraram clareza quanto a necessidade de imunização prévia e compareceram espontaneamente aos postos de vacinação. Em 1909, o Instituto Soroterápico Nacional passou a se chamar Instituto Oswaldo Cruz (fig. 3), e em 1917, aos 44 anos, Oswaldo Cruz faleceu por insuficiência renal em Petrópolis (RJ), após ter abandonado o Instituto por motivos de saúde.
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Fig. 3. Instituto Oswaldo Cruz |
Dentre as suas contribuições para a saúde no Brasil podemos destacar:
1. (1906) Criação de um código sanitário para portos marítimos e fluviais com regras internacionais.
2. (1908) Erradicação da Varíola, Peste Bubônica e Febre Amarela no Rio de Janeiro.
3. (1910) Combate à Febre Amarela na via férrea Madeira-Mamoré no Amazonas.
4. (1912) Saneamento do vale amazônico com a colaboração de Carlos Chagas.
Cabe ressaltar que as condições sanitárias nas grandes capitais antes de 1904 não eram atrativas para a vinda dos estrangeiros devido aos riscos que representavam para a saúde. Quando se iniciaram as campanhas de saneamento no Rio de Janeiro por Oswaldo Cruz, e em São Paulo por Emílio Ribas e Adolfo Lutz (estes um pouco antes em 1903), os índices de imigração sofreram uma alta considerável, convergindo com os interesses das elites oligárquicas que também ocupavam os principais cargos políticos no Brasil.
A saúde no Brasil pós segunda guerra mundial. O Jeca Tatu.
A primeira guerra mundial ocorreu entre 1914 e 1918. Após o seu término, a Europa entrou em profunda recessão. O Brasil em 1920 era uma jovem república abalada em sua principal indústria, a cafeeira, por conta das incertezas econômicas geradas por um mundo economicamente arruinado por guerras. O velho continente ainda tentava se recuperar dos imensos prejuízos acumulados diminuindo o consumo de produtos importados e aumentando a produção interna. Essas medidas afetaram em cheio o Brasil e os Estados Unidos. A falta de escoamento da superprodução americana levou ao aumento do desemprego e à hiper desvalorização da bolsa de Nova York em 1929, culminando com uma grande recessão no mundo capitalista da qual o Brasil não passou ileso.
Neste período, o Brasil iniciava a sua revolução industrial tardia e vivia as suas próprias contradições. Por um lado, tratava-se de um país atrasado, predominantemente rural, de tradição escravista e patriarcal. Por outro, os grandes centros urbanos como Rio de Janeiro e São Paulo respiravam uma certa modernidade e se urbanizavam rapidamente acentuando seus contrastes sociais.
Na saúde predominava o pensamento sanitarista de Oswaldo Cruz com seu modelo de medicina preventiva e científica que aos poucos influenciava as escolas de medicina que ainda estavam na teoria dos miasmas. Nas artes, uma nova identidade nacional surgia a partir da semana de arte moderna de 1922. Na música, o grande maestro e compositor Heitor Villa-Lobos fundia o clássico com o folclore brasileiro de forma genial e internacionalmente reconhecida. Na literatura, o Movimento Modernista se apropriava de uma discurso realista a partir de uma produção politicamente engajada que trazia como principais características a valorização da cultura brasileira e sua fusão com estéticas estrangeiras. Dentre os muitos representantes destacam-se Rachel de Queiroz e Carlos Drummond de Andrade.
Entre os opositores do Movimento Modernista estavam os defensores da eugenia, uma das principais ideologias raciais responsável pelas condições de abandono sanitário, cultural e humanitário as quais estavam submetidas a população brasileira de origem africana recém libertada pela Lei Áurea em 13 de maio de 1888. Neste contexto surge a personagem estereótipo do brasileiro caipira chamado de Jeca Tatu (Fig. 4), de Monteiro Lobato.
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Fig. 4. Jeca Tatu. |
Tratava-se de uma representação estereotipada do homem do campo eternamente doente, necessitado, sofrendo de preguiça crônica e fome. Esta condição espelhava a outra extremidade da realidade das políticas públicas de saúde que se limitavam aos centros urbanos de maior importância e mantinham o campo em total abandono.
A emergência do movimento sanitário brasileiro.
Para as elites, a salvação do Brasil passava pelo “branqueamento” da raça. Era necessário trazer sangue “bom” dos imigrantes do norte. O branqueamento melhoraria a resistência às doenças aumentando a produtividade, diziam eles! Com este pensamento, os afrodescendentes recém libertos foram abandonados pelas oligarquias e todo o esforço se voltou para o projeto eugênico, racista, não inclusivo, para trazer imigrantes – principalmente italianos – para o campo. Assim, o Brasil acumulava mais uma dívida com aqueles que de fato, e contra a própria vontade, haviam construído a Nação até aquele período: o povo brasileiro de origem africana!
Neste momento, já se podia dizer que havia no Brasil um Movimento Sanitário que se dividia entre ideias contraditórias quanto aos seus objetivos e crenças. Entretanto, uma linha de pensamento começava a sobressair:
“O atraso brasileiro não era uma questão de raça, mas uma questão de doença.”
Não se tratava de um determinismo biológico, mas de uma reorientação quanto as ações de construção de uma nacionalidade que pudesse ser forjada a partir de um olhar das elites mais para o interior do país do que para o exterior, um olhar que fosse mais preocupado com as grandes endemias dos sertões. A lógica era simples: Doente = raça fraca = nação sem futuro (Santos, 1985).
O pensamento sanitário no Brasil fez com que, naquele momento histórico entre 1923 a 1927, o sanitarismo se convertesse no projeto médico-social brasileiro. O projeto baseava-se no que se denominou de campanhismo. O campanhismo era um modelo vinculado à indústria agroexportadora que requeria trabalhadores saudáveis e produtivos, além de portos e cidades saneadas para estimulação de comércio e imigração.
Portanto, das principais ações empregadas como medidas higienistas no início do século XX pode-se distinguir:
1. Campanhas sanitárias de combate a grandes epidemias como febre amarela, peste bubônica e varíola.
2. Implementação de programas de vacinação obrigatórios.
3. Desinfecção dos espaços públicos e domiciliares.
4. Medicalização do espaço urbano.
A República Velha marcou um ponto de inflexão no desenvolvimento das políticas públicas em saúde. Não podemos esquecer-nos da lei de assistência à saúde pela previdência social denominada Caixas de Aposentadoria e Pensão (Lei Eloy Chaves de 1923). Mas sobre isso falaremos no próximo capítulo. Até lá!
Na prática
Você deve estar se perguntando: Qual a utilidade de tantos conceitos? Imagine o quadro pandêmico ocorrido entre 2020 e 2022. Vivenciamos o medo de uma possível contaminação pelo coronavírus e por isso nos mantivemos em isolamento social o máximo possível. Quando precisávamos sair tínhamos que usar máscaras e mantermo-nos a uma distância segura dos outros. Observe que muitas pessoas ainda vivem no contexto miasmático ou sobrenatural, e negam os avanços científicos que permitem a identificação dos agentes causais das doenças e o desenvolvimento de vacinas.
A falta de compreensão sobre um conceito ampliado de ciência coloca o sujeito em um estado de negação e mistificação quanto aos fenômenos naturais, sociais e comportamentais, comprometendo medidas sanitárias capazes de conter a disseminação do vírus e o adoecimento das pessoas. O Brasil experimentou esta realidade no período de 2020 a 2022 durante o governo do Presidente Jair Bolsonaro, que promoveu campanhas públicas de desinformação sobre vacinação, isolamento social e uso de máscaras, levado a um negacionismo coletivo. O resultado deste comportamento foi a amplificação do número de mortos durante a pandemia: mais de 600 000 mortos em apenas um ano no Brasil.
Resumo do primeiro capítulo.
Nesta unidade vimos que as condições de saúde no Brasil sempre estiveram alinhadas com o pensamento dominante de sua época. As medidas higienistas no Brasil Colônia seguiram os conceitos da teoria dos miasmas porque não haviam fundamentos científicos mais confiáveis naquele momento. Contudo, a ciência não é estática e se movimenta permanentemente. Na República Velha, as políticas de saúde se adequaram à vanguarda do pensamento europeu, passando a perceber a doença como resultado da interação com os microrganismos de acordo com a teoria unicausal. Seu maior representante foi o sanitarista Oswaldo Cruz que iniciou uma campanha de saneamento e de vacinação visando erradicar as grandes epidemias. Cabe destacar que as políticas econômicas nem sempre estiveram alinhadas com os avanços científicos – principalmente quando se tratava de produtividade. Assim, os trabalhadores eram tratados como componentes de uma engrenagem que não podia parar. O lado humano era esquecido.
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