sábado, 6 de janeiro de 2024

Políticas Públicas de Saúde (Capítulo 2/1): Identidade Nacional e Sanitarismo.

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Prezado (a) amigo (a), se quiser utilizar o meu trabalho como referência para o seu trabalho, siga o modelo abaixo.

ROMANHA, Waldemiro de Souza. A Era Vargas. In: ROMANHA, Waldemiro de Souza. Políticas Públicas de Saúde. Rio de Janeiro: UVA, 2021. p. 38 – 44. E-book: ISBN 978-65-5700-108-0.   Disponível em: https://www.blogger.com/blog/post/edit/preview/8502128735235054609/1764432953092209679


Introdução


A construção de uma política de saúde pública no Brasil atravessou um ambiente histórico em que projetos de poder subjetivados por interesses distintos se movimentaram como peças em um jogo de interesses pouco republicano.

Sabe-se que o gerenciamento de políticas públicas de saúde ao nível das três esferas governamentais confere grande poder ao gestor público em função dos altos níveis orçamentários envolvidos, principalmente em um país de dimensões continentais como o Brasil. Neste âmbito, o direcionamento das abordagens em saúde alcança milhões de pessoas a um custo vultoso. Portanto, historicamente foi necessário construir uma política pública em que a saúde se convertesse em uma garantia constitucional, e, por isso mesmo, este processo ganhou relevância a partir da República Velha. As tomadas de decisões ocorridas durante o processo histórico dessa construção foram, em suas maiorias, eivadas de falhas, deixando um legado histórico de fragilidades que reflete, até os dias atuais, um sistema de saúde vulnerável a fraudes.


Identidade Nacional e Sanitarismo


                                                             A construção de um projeto de                                                         poder sem que a saúde esteja em                                                                     destaque como um marco                                                 governamental  estará fadado ao fracasso.


Durante o período colonial, o processo de consolidação do território brasileiro como uma unidade integrada e indissolúvel se deu a partir da construção de uma identidade nacional em que cada sujeito, de norte a sul, estivesse sob os mesmos estímulos legais e culturais. Foi por isso que no Brasil-colônia, a coroa portuguesa estimulou o comércio entre todas as capitanias hereditárias tornando-as inter-relacionadas e culturalmente identificadas. Este modelo foi complementado pela ação da igreja católica ao exercer controle sobre a vida cotidiana e política das comunidades a partir dos seus arcebispados e sob a tutela do império. Do arcebispado da Bahia saíam os comandos para os demais arcebispados, que se utilizavam das igrejas e paróquias espalhadas pelo Brasil para capilarizar modelos comportamentais reforçadores de laços culturais em todo o território nacional.

Festa do Divino (calendário cristão português) instituída
 no Brasil por Dom Pedro I.

Portanto, o Brasil, desde o período imperial até hoje, foi marcado por tentativas de se criar uma identidade nacional a partir de um comércio forte e uma igreja centralizadora, porém capilarizada. Qualquer movimento separatista era reprimido violentamente. A formação de uma identidade nacional consolidaria um modo de ser, uma forma de pensar e um comportamento padrão de fácil controle social. Estes foram os principais motivos que mantiveram o Estado brasileiro ”íntegro” e coeso, evitando seu esfacelamento em pequenas repúblicas como ocorreu na América Espanhola.

O movimento sanitarista brasileiro entendeu muito cedo que a saúde não podia ficar de fora desta construção e, aos poucos, percebeu que a consolidação de uma identidade nacional deveria passar por uma política pública de saúde que fosse intervencionista e que englobasse de forma coletiva os contingentes de brasileiros totalmente esquecidos pelo Estado nos mais profundos rincões do território nacional.

Para o insipiente pensamento sanitarista do início do século XX, a construção de uma identidade nacional deveria incorporar uma consciência sanitária a partir de políticas públicas de Educação em Saúde que fossem inseridas nos currículos escolares desde a alfabetização. Neste contexto, o sanitarismo passaria a ter um caráter político. Este pensamento empolgou o movimento sanitarista brasileiro motivando ações de campo voltadas para a conscientização das populações rurais (sanitarismo rural). Esta abordagem representou um corte no pensamento da medicina liberal que era voltada para uma assistência individual e curativa. O pensamento sanitarista era coletivo e voltado para ações profiláticas e preventivas. O auge deste pensamento se deu na década de 1920.

Neste período, as populações do interior do Brasil estavam sujeitas a um regime político denominado Coronelismo. Regime este em que os trabalhadores eram semi-escravizados por grandes latifundiários (coronéis). A saúde era secundária nesta conjuntura. O movimento sanitário brasileiro percebeu que era urgente uma intervenção governamental nestes territórios. Era necessário que o ideário sanitarista de Oswaldo Cruz chegasse à zona rural como uma forma de redenção nacional (CASTRO, 1985).

Se por um lado, uma parte do  pensamento sanitarista brasileiro caminhava para um contexto rudimentar de saúde coletiva a partir de ações intervencionistas no interior do país, por outro, vigorava um pensamento sanitarista distinto, de cunho urbano, sombreado por um sentimento proto-eugênico, altamente influencer, cujos interesses higienistas se utilizavam do conhecimento científico com propósito único de manter a ordem a partir da organização dos espaços públicos, visando à erradicação de epidemias para não comprometer as políticas de imigração do Brasil (sanitarismo urbano).

Enquanto isso, nas cidades, os trabalhadores das empresas e indústrias estavam alheios aos debates e pensamentos nacionalistas do movimento sanitarista. A realidade que se impunha à classe média trabalhadora era a ausência de direitos que ameaçava uma velhice tranquila, remunerada e com saúde. Em 1920 (que dirá antes disso) não havia plano de previdência ou qualquer outro direito trabalhista. Cabe lembrar que o Brasil estava em um período de rápida industrialização e acelerada urbanização. Portanto, a luta dos trabalhadores por direitos resultava em inúmeras paralisações e greves, principalmente no setor ferroviário que foi o pioneiro na politização das lutas de classe no Brasil. De um lado estavam os oligarcas donos dos meios de produção, europeizados e brancos, herdeiros seculares de terras, fábricas e prédios, cada vez mais ávidos por lucros. Do outro estavam os trabalhadores miscigenados, pobres e historicamente esquecidos pelo sistema que ainda respirava ares escravistas.

 

Não havia justiça para todos!

 

A forte agitação popular por direitos trabalhistas tais como: reajuste salarial periódico, adicional noturno, assistência médica, férias e aposentadoria, obrigou os políticos a reagir. Em 1923, o presidente Arthur Bernardes (1922 – 1926) assinou uma lei proposta e enviada pelo deputado federal Eloy Chaves que obrigava cada companhia ferroviária do país a criar Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs) a partir de contribuições feitas por funcionários e patrões. A partir deste modelo de organização privada foi possível garantir uma série de benefícios a aposentados e pensionistas (Agência Senado, 2019). Estava criada a primeira estrutura previdenciária do Brasil que se espalhou pelas demais categorias trabalhistas. 

Imigração europeia em substituição à mão de obra especializada
de afro-brasileiros escravizados.

Enquanto nas cidades havia forte tensão entre trabalhadores, proprietários de indústrias e empresas privadas, na saúde pública o movimento sanitarista procurava se utilizar da máquina estatal para avançar para o interior do Brasil como uma forma de integração nacional e construção de uma identidade. Entretanto, o estabelecimento de uma associação entre saúde pública e o capitalismo crescente da jovem república brasileira só seria possível se houvesse convergência entre os interesses das oligarquias com os ideais nacionalistas dos sanitaristas. Portanto, grande parte do ideário sanitaristas só foi possível porque as oligarquias, detentoras dos grandes latifúndios e dos meios de produção, entenderam que o saneamento dos espaços públicos, portos e moradias consideradas insalubres, eram de vital importância para seus interesses estratégicos. Ou seja, estimular a imigração europeia visando substituir a mão de obra escravizada. Em fim, o velho protocolo eugênico de nação que grande parte das elites aspiravam.

Portanto, durante a República Velha haviam duas correntes principais de sanitarismo nacionalista. Estas visões ganharam forte impulso após o término da primeira guerra mundial (1914 -1918). A primeira corrente, de cunho urbano (sanitarismo urbano), estava alinhada ao movimento desenvolvimentista e higienista das grandes cidades, atribuindo grande valor à política de imigração de europeus brancos para o Brasil. A segunda tinha um olhar voltado para o interior (sanitarismo rural), principalmente para o povo miscigenado do sertão brasileiro, onde se acreditava estarem os verdadeiros valores nacionais que necessitavam de resgate.

A primeira visão era eugênica e creditava à miscigenação todos os males que tornava o brasileiro cronicamente doente. A solução estava na europeização do Brasil e consequente branqueamento da população “melhorando” o sangue e tornando-o mais resistente às doenças tropicais. Estávamos em plena era do “racismo científico”: um fundamento teórico e racional com força suficiente para conquistar mentes e corações daqueles que buscavam justificativas para cometer todo o tipo de violência contra a população de origem africana. Tal ideologia era inspirada no fascismo italiano de Mussolini (1922) que havia influenciado o Nazismo Alemão a partir de 1933 com a chegada de Hitler ao poder. No Brasil, encontrou forte apoio no infame partido de extrema direita, ultraconservador, de Plínio Salgado, chamado de integralista (Ação Integralista Brasileira – AIB).

ABI - partido de fascistas brasileiros.

O então chamado racismo científico contagiou um grupo enorme de profissionais da saúde pública que culpabilizava de forma contundente a herança africana pela “baixa” resistência dos brasileiros a doenças. 

A segunda corrente nacionalista estava relacionada com o pensamento sanitarista rural e incluía aqueles que viam no resgate do sertão e do sertanejo a tarefa de construção da nação. Para eles, era necessário valorizar a agricultura e o homem do campo. A busca de uma identidade nacional passava por um olhar mais atento para o interior, onde as raízes do Brasil eram profundas e a identidade já estava em processo de consolidação. Portanto, o saneamento rural era o principal objetivo desta corrente, pois já estava claro que a condição de vulnerabilidade do sertanejo era devida a doenças tropicais e não a um determinismo biológico geneticamente herdado. O homem do interior estava sujeito a uma série de perigos que o mantinha em constante risco de infecções devido ao estado de deficiência sanitária local. Neste momento o escritor Monteiro Lobato, criador, entre outros, do personagem Jeca Tatu e da obra O Sítio do Pica-Pau Amarelo, abdica de suas concepções racistas e abraça o sanitarismo rural como a principal questão nacional.


Continua...


Bibliografia

1. Castro, S. L. A. O pensamento sanitarista na primeira república: Uma ideologia de construção da nacionalidade. Revista de Ciências Sociais. 28(2):123-210, 1985. Biblioteca Virtual em Saúde (bvsalud.org)

2. Nunes, E. D. Sobre a história da saúde pública: ideias e autores. Ciência e Saúde Coletiva. 5(2): 251-264,  2000. https://www.scielo.br/pdf/csc/v5n2/7095.pdf

3. Junior, A. G. S. & Alves, C. A. Modelos Assistenciais em Saúde: desafios e perspectivas. In: Marosini M. V. G. C. & Corbo, A. D. Educação Profissional e Docência em Saúde: a formação e o trabalho do agente comunitário de saúde. Rio de Janeiro (RJ): FIOCRUZ; 2011.

4. Paim, J.; Travassos, C.; Almeida, C.; Bahia, L.; Macinko, J. O Sistema de Saúde Brasileiro: história, avanços e desafios. The Lancet. 6735(11): 60054-8, 2011.

5. Aguiar, Z. N. Antecedentes históricos do Sistema Único de Saúde (SUS): breve história da política de saúde no Brasil. In: Aguiar, Z. N. SUS Sistema Único de Saúde: antecedentes, percurso, perspectivas e desafios. São Paulo (SP): Martinari, 2011.

6. Cohn, A. O estudo das políticas de saúde: implicações e fatos. In: Campos, W. G. S.; et. alTratado de saúde coletiva. São Paulo (SP): Hucitec, 2006.

 

Midiateca

Mídia 1

Guerras no Brasil: A Revolução de 1930.

Descrição:

Contextualização histórica do Brasil pré e pós-revolução de 30.

Fonte:

https://www.youtube.com/watch?v=cH5HPE11qg4

 

Mídia 2

Lei Eloy Chaves: Cria as Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAPs)

Descrição:

Palestra sobre as CAPs instituída pela Lei Eloy Chaves. Primeiro ato de previdência social no Brasil.

Fonte:

https://www.youtube.com/watch?v=5BRa1GvlSqM

 

Mídia 3

Políticas públicas de saúde: Sistema Único de Saúde

Descrição:

Linha do tempo dinâmica com todas as políticas públicas de saúde desde 1923 até 2006.

Fonte:

https://www.unasus.unifesp.br/biblioteca_virtual/esf/2/unidades_conteudos/unidade04/p_01.htm#sample2

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