ROMANHA, Waldemiro de Souza. As Políticas de Saúde na República Velha. In: ROMANHA, Waldemiro de Souza. Políticas Públicas de Saúde. Rio de Janeiro: UVA, 2021. p. 09 – 27. Disponível em:
Quando os europeus chegaram ao Brasil encontraram um território tomado por guerras e conflitos culturais entre as diversas nações e troncos indígenas que aqui habitavam. Os Tupis/Guaranis compunham a maioria dos habitantes, e haviam migrado através dos Andes em direção à floresta amazônica há aproximadamente 2000 anos. A ocupação se deu de forma progressiva ao longo de todo o litoral sul-americano expulsando os Tapuias, seus antigos habitantes e sucessores dos homens caçadores/coletores.
É neste contexto que se desenrola a história do Brasil.
Considere um país tomado por outra cultura invasora, europeia, com objetivo único de conquistar e explorar as riquezas locais. Foi nesta condição caótica de guerras superpondo guerras que a saúde se desenvolveu no Brasil, onde todos os tipos de patologias infecciosas se espalhavam sem nenhum controle. Com a chegada dos europeus, também vieram patógenos capazes de provocar infecções de fácil transmissão. As primeiras vítimas foram os indígenas, pois estes eram desprovidos de uma imunidade suficientemente eficiente para combater novos e não usuais agentes infecciosos. Como exemplos podemos citar o sarampo, a gripe, a varíola e a febre amarela entre os de maior incidência e os mais importantes na vitimação de milhares de nativos, colonos, e africanos escravizados durante os quadros epidêmicos que se sucediam ao longo de toda a história de ocupação pelos portugueses.
A varíola foi utilizada como arma biológica no extermínio dos índios Goitacá que habitavam a região de Campos (RJ), consolidando um modo de operação bélica contra os inimigos da coroa portuguesa. A estratégia consistia basicamente em presentear os índios com roupas de soldados mortos pela doença. Cabe ressaltar que esta medida foi tomada a partir do esgotamento de todas as vias expansionistas convencionais empregadas na luta contra os ferozes guerreiros. Um exemplo de sua ferocidade está no rito de passagem para a fase adulta. Quando o menino completava dezoito anos tinha que se lançar nas águas turvas da foz do Rio Paraíba do Sul e trazer um tubarão morto para a terra. Além disso, eram hábeis corredores e exímios caçadores, o que motivou os portugueses a utilizar estratégias de guerra biológica.
Muitas outras doenças chegaram ao Brasil após o descobrimento, como a Esquistossomose e a Leishmaniose, instaladas em africanos trazidos nos porões dos navios negreiros para trabalhar como escravos na indústria cafeeira (Katz e Almeida, 2003). Desta forma, as doenças, tanto de portugueses quanto de africanos, se alastraram pelo país acometendo centenas de milhares de habitantes e permanecendo até hoje como endemias.
Até a chegada da Família Real em 22 de janeiro de1808, a medicina por aqui restringiu-se a práticas conhecidas como artes de curar: um compêndio de saberes e procedimentos derivados das culturas indígenas, africanas e de famílias portuguesas empobrecidas que aqui moravam. Os doentes que necessitavam de cuidados procuravam a ajuda de pajés, curandeiros e boticários. A despeito da eficiência de tais práticas, pode-se dizer que do ponto de vista da administração portuguesa, até a metade do século XVIII, a saúde não fazia parte do projeto colonial e por isso mesmo, para os padrões europeus, o que se observava era o predomínio de espaços sociais desorganizados. Quando muito, havia uma preocupação explícita com a doença, como no caso da hanseníase e da peste, motivando algum controle sanitário sobre portos, ruas, casas e praias (Nunes, 2000).
A partir do século XIX, novas demandas alteraram o quadro político da saúde no Brasil. Entre as principais, destacam-se a vinda da família real para o Brasil na passagem de 1807 para 1808, e o entendimento de que a manutenção do aumento da produção industrial estava atrelada à saúde do trabalhador. A lógica era irrefutável e estimulou intervenções mais efetivas voltadas para a saúde pública, entre elas a implementação de escolas estatais de medicina. A primeira foi a Escola de Cirurgia da Bahia em 1808. Posteriormente, em 1809, foram fundadas a Cátedra de Anatomia do Hospital Militar e a Escola de Medicina no Rio de Janeiro. Em 1829 foi criada a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro que se constituiu na força motriz da medicina social brasileira.
A medicina social compreendia uma série de programas voltados para a organização e higienização dos espaços públicos, entre eles:
· A regulamentação das farmácias.
· O fim dos cemitérios nas igrejas.
· As reformas de hospitais.
· A assistência aos doentes mentais.
· A educação física para as crianças.
O fundamento científico que racionalizava tais medidas higienistas estava calcado na teoria miasmática que permitia o diagnóstico do quadro geral.
A teoria dos miasmas foi cunhada por Hipócrates há 2.500 anos. Hipócrates era um médico grego que acreditava na sazonalidade das doenças uma vez que era possível observar a influência das estações na saúde das pessoas. De forma complementar, acreditava que o modo de vida das populações era determinante para o processo saúde/doença, e que as doenças poderiam ser adquiridas pelos ares fétidos ou miasmas emitidos pelos pântanos, lençóis freáticos, poças contaminadas, matéria orgânica em decomposição ou qualquer tipo de ambiente insalubre incluindo as florestas. O pensamento de Hipócrates foi tão importante que persistiu até meados do século XVII por se tratar de uma explicação racional sobre as doenças, sem vinculação sobrenatural, ainda que equivocada.
Dentro do princípio teórico miasmático distinguiam-se duas categorias relacionadas às desordens sanitárias:
1. As causas naturais.
2. As causas sociais.
As causas naturais estavam relacionadas com a presença de mangues, baixadas alagadiças, relevos acidentados e todos os tipos de acidentes geográficos presentes no perímetro metropolitano. As causas sociais se dividiam em dois níveis analíticos: Os Macrossociais e os Microssociais. Os níveis Macrossociais se ajustavam ao funcionamento geral das cidades; os níveis Microssociais estavam associados com o funcionamento das instituições (Oliveira, 1983).
As políticas públicas em saúde no período colonial foram construídas com base na teoria dos miasmas. Portanto, as ações partiam de um exame detalhado dos espaços urbanos que apresentassem riscos de transmissão de doenças. Posteriormente eram tomadas medidas voltadas para a medicalização de instituições como escolas, quartéis, hospitais, cemitérios, fábricas e prostíbulos, entre outros (Nunes, 2000).
Apesar de todos os esforços que permitiram os avanços da saúde pública no Brasil, em 1850 o Rio de Janeiro foi assolado por uma epidemia de febre amarela que acometeu centenas de milhares de pessoas com graves consequências para a capital da república e para todo o país. A teoria miasmática já não era mais suficiente para explicar as doenças.
Teoria dos miasmas x Teoria do germe da doença
A medicina social aos poucos foi aumentando a sua importância institucional a partir da chancela das faculdades de medicina, tornando-se progressivamente uma espécie de guardiã da saúde pública responsável pela reorganização e higienização dos espaços públicos. As ações de controle e regulamentação do comércio e serviços estavam cada vez mais centralizadas no Estado e a teoria dos miasmas era a doutrina ideológica que permeava todas as políticas de saúde.
Por outro lado, a Europa do século XVII protagonizou uma revolução científica que progressivamente tomou corpo a partir dos avanços tecnológicos que tornaram os microscópios cada vez mais avançados. Era o século do surgimento da microbiologia sob a ótica de Van Leeuwenhoek (1632 a 1723), também conhecido como o pai da microbiologia, que em 1680 utilizando microscópios rudimentares construídos por ele, havia descrito micróbios presentes em gotas de água de lagoa e em diversos microambientes jamais imaginados por seus contemporâneos. O debate transcorreu em torno da presença ou não de micróbios específicos presentes nos ares capazes de causar alterações na saúde dos animais e no estado dos alimentos. A comprovação da presença de tais micróbios e sua ação seria suficiente para derrubar a teoria dos miasmas e a teoria da geração espontânea.
A geração espontânea preconizava que a vida surgia espontaneamente da matéria morta ou do alimento apodrecido. Contra ela haviam muitos opositores como o cientista alemão Rudolf Virchow e o químico francês Louis Pasteur. Para contrapor a geração espontânea, Virchow cunhou o termo biogênese, significando que a vida só poderia existir a partir de outra vida. Em 1857, o Francês Louis Pasteur demonstrou que microrganismos presentes no ar eram responsáveis pela fermentação que convertia o suco de uva em vinho. Em outras palavras: Pasteur descobriu que leveduras ou fungos presentes no ar, hoje conhecidos como Saccharomyces cerevisiae (sp), contaminavam o suco e degradavam o açúcar presente (frutose) gerando vários subprodutos, entre eles o etanol e o gás carbônico. Pronto, habemus vino! Durante este processo os fungos se multiplicavam.
Estava comprovado que o ar continha uma variedade de micróbios capazes de decompor a matéria orgânica em subprodutos distintos encerrando a discussão. As descobertas de Pasteur alertaram a comunidade científica para similaridades nos processos de adoecimento. Ou seja, se microrganismos presentes no ar podiam alterar de forma significativa os alimentos, seria provável que as doenças tivessem as mesmas causas? Esta ideia ficou conhecida como a teoria do germe da doença ou teoria unicausal: Para cada doença, um germe! A partir daí os avanços científicos foram muitos.
- Em 1876, Robert Koch descobriu que uma bactéria em forma de bastão (Bacillus anthracis) era a causadora do Antraz ou carbúnculo.
- Em 1882, Koch também descobriu que o Mycobacterium tuberculosis era a bactéria causadora da tuberculose.
- Em 1910, Carlos Chagas realizou uma descoberta fascinante que mudou a ciência no Brasil. Sozinho, ele descobriu como a doença de Chagas era transmitida; identificou o seu vetor (o barbeiro Triatoma infestans) e o agente etiológico (o protozoário Trypanosoma cruzi); e descreveu a sua ecologia e suas regiões endêmicas.
Chagas descreveu também a cardiopatia chagásica e todo o desenvolvimento da doença e seu tratamento. Até hoje a coleção de corações examinados por Carlos Chagas está guardada no Instituto Oswaldo Cruz sob a responsabilidade do Departamento de Patologia.
Este autor que vos escreve teve a grande oportunidade de conhecer a coleção de Carlos Chagas por ter sido estudante naquele conceituado departamento até o doutoramento. Fica aqui minha homenagem ao Dr. Henrique Leonel Lenzi (1943 †2011), meu amigo e orientador de Mestrado e Doutorado, maior especialista em esquistossomose do mundo, patologista chefe do Departamento de Patologia do IOC; ex vice-diretor do Instituto Oswaldo Cruz e descobridor do local exato em que o protozoário Trypanosoma cruzi faz o seu ciclo de vida completo no gambá: na glândula de cheiro (comunicação pessoal). Afirmação envolta em polêmica já que a autoria da descoberta foi creditada a outro nome.
Um dos mais iminentes estagiários de Carlos Chagas foi Cecílio Romanha (1901-1997), epidemiologista argentino que contribuiu com muitos trabalhos para o entendimento da doença de chagas, sua distribuição no continente e seu diagnóstico (Dias, 1997).
O feito de Carlos Chagas se igualou ao de Robert Koch com seus estudos sobre tuberculose. Koch recebeu o Prêmio Nobel de medicina em 1905. Já Carlos Chagas, tal qual Oswaldo Cruz, foi odiado pela classe médica brasileira da época. Cabe ressaltar que em 1925 Chagas foi lembrado por ninguém menos que Albert Einstein para o prêmio. Entretanto, a forte oposição de médicos higienistas e miasmáticos brasileiros, que sequer acreditavam na doença, fizeram com que o comitê do Nobel não levasse à frente a indicação. Além do mais, os investimentos praticamente inexistentes em ciência acabaram por inviabilizar definitivamente a indicação do grande cientista.
Com a vitória da teoria unicausal, foram estabelecidos em 1851, a partir da I Conferência Sanitária Internacional, os protocolos de prevenção de doenças que incluíam a quarentena e o controle de animais.
Bibliografia
1. Nunes, E. D. Sobre a história da saúde pública: ideias e autores. Ciência e Saúde Coletiva. 5(2): 251-264, 2000. https://www.scielo.br/pdf/csc/v5n2/7095.pdf
2. Costa, M. C. L. Influências do discurso médico e do higienismo no ordenamento urbano. Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Geografia. 9(11): 63-73, 2013. https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/anpege/article/viewFile/6492/3473
3. Dias, J. C. P. Cecílio Romaña. O sinal de Romaña e a doença de chagas. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. 30 (5): 0-0, 1997. https://doi.org/10.1590/S0037-86821997000500012
4. Castro, F. S. & Landeira-Fernandez, J. Alma, mente e cérebro na pré-história e nas primeiras civilizações humanas. Psicologia: reflexão e crítica. 23 (1):141–152, 2010. https://doi.org/10.1590/S0102-79722010000100017
5. Katz, N. & Almeida, k. Esquistossomose, xistose, barriga d’agua. Ciência e Cultura. 55 (1):1-5, 2003.
6. Castro, S. L. A. O pensamento sanitarista na primeira república: Uma ideologia de construção da nacionalidade. Revista de Ciências Sociais. 28(2):123-210, 1985. Biblioteca Virtual em Saúde (bvsalud.org)
7. Madigan, M. T.; Martinko, J. M & Parker, J. Microbiologia de Brock – 10 ed. – São Paulo: Pearson, 2004.
Mídias
8. Como os Homo sapiens se espalharam pelo mundo. A dispersão do homem primitivo pelos continentes. Evolução e antropologia. https://www.youtube.com/watch?v=oBLYb636tFA
9. A revolta da vacina é uma história contada pela metade: Crítica sobre a ação higienista das brigadas de Oswaldo Cruz durante a campanha de vacinação em 1904. https://www.youtube.com/watch?v=kEIFyVxpRSQ
11. A História da capoeira. Eduardo Bueno. https://youtu.be/fAdeOPjprro
Nenhum comentário:
Postar um comentário