A Construção do SUS
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ROMANHA, Waldemiro de Souza. A descentralização das políticas de saúde e a criação do SUS. In: ROMANHA, Waldemiro de Souza. Políticas Públicas de Saúde. Rio de Janeiro: UVA, 2021. p. 45 – 60. Disponível em:
Em 1985, o Brasil finalmente libertou-se do jugo da ditadura militar e iniciou um período chamado República Nova. As diretrizes definidas na VIII Conferência Nacional de Saúde (1986) foram incluídas na Constituição de 1988 dando início a um processo longo e desgastante de implementação do SUS. Palavras com universalidade, equidade e integralidade passaram a ser letras da lei, e portanto dever e obrigação do poder público.
No Brasil as coisas não são tão simples: Lei tem que "pegar". Se ela não "pega", não tem punição.
Deve ter sido por isso que Tom Jobim, o grande compositor e maestro brasileiro, disse uma vez: O Brasil não é para principiantes. Algumas variantes desta frase se converteram em: O Brasil não é para amadores. Faz sentido, pois em terras tupiniquins não havia estrutura hospitalar para fazer cumprir a lei. Foi preciso toda a inteligência nacional para que chegasse até onde se chegou com o SUS.
O Artigo 196 da Constituição Federal do Brasil de 1988 afirma que:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (Constituição Federal, Artigo 196).
Finalmente o Brasil tinha uma lei compatível com as suas aspirações. Uma Lei representativa de uma uma identidade sanitária pela qual tanto se lutou. A Lei afirma que é preciso ações de promoção de saúde como forma de política social para que ocorra redução e riscos de doenças e agravos.
E se lermos o artigo 197, veremos que cabe ao poder público regulamentar, fiscalizar e controlar o sistema de saúde, devendo sua execução ser feita diretamente ou por meio de terceiros. Observe o contexto: “por meio de terceiros”. Trata-se da velha medicina liberal que conseguiu se inserir no texto para garantir seu filão.
No Artigo 129 lê-se: A assistência à saúde é livre à iniciativa privada, que poderá complementar o SUS. No texto, fica claro que a ideia de “complementar o SUS” significa utilizar dinheiro público para fins lucrativos, exatamente como no passado quando a saúde privada e a medicina liberal vendiam serviços e equipamentos para o antigo INAMPS sem que para isso a assistência fosse de qualidade, humanizada ou integralizada.
Por outro lado, o que está escrito no Artigo 198 representa um salto extraordinário e uma conquista dos reformistas.
As ações e os serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada, constituindo um sistema único organizado pelas seguintes diretrizes: descentralização e atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas. O Sistema Único de Saúde será financiado com recursos da Seguridade Social, da União, dos Estados e dos Municípios e outras fontes (Constituição Federal, Artigo 198).
Neste artigo fica muito claro de onde vem o recurso para o SUS. Entre outros, o SUS será financiado com recursos da Seguridade Social (SS).
A reforma sanitária representou um período de transição entre a Previdência Social e a Seguridade Social. Portanto, é importante compreender que se tratam de coisas diferentes. A Seguridade Social compreende um conjunto de políticas públicas voltadas para o bem-estar do cidadão. A Previdência Social compreendia a um pacote de serviços de saúde, oferecido aos contribuintes, de qualidade duvidosa e subsidiado pelo Governo
Neste contexto, a Seguridade Social se organizou em torno de três serviços principais que correspondem a um tripé constituído pela:
- Previdência social (PS).
- Saúde (S).
- Assistência Social (AS).
No Artigo 124 da Constituição encontramos a seguinte definição: A Seguridade Social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinado a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
No tripé ao lado podemos perceber que a Saúde, a Previdência Social e a Assistência Social constituem um conjunto de políticas públicas da Seguridade Social. Portanto, do ponto de vista participativo, apenas trabalhadores com carteira assinada ou contribuintes facultativos ou autônomos têm direito a todos os benefícios apontados no tripé.
Os trabalhadores de carteira assinada estão sujeitos à tributação obrigatória com desconto em folha de pagamento com a finalidade de gerar o patrimônio da Previdência. O imposto é chamado de Instituto Nacional de Seguro Social (INSS). Logo, apenas os contribuintes do INSS usufruem dos três eixos fundamentais que formam o tripé da Seguridade Social. Os não contribuintes podem se utilizar apenas da Saúde e da Assistência Social gratuitamente.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) divulgada pelo IBGE, em dezembro de 2019 o Brasil tinha 24,4 milhões de trabalhadores informais sem carteira assinada. Somando este universo aos 12,4 milhões de desempregados no mesmo ano, segundo essa mesma pesquisa, tinha-se uma multidão de 36,8 milhões de brasileiros que não contribuíam para a Seguridade Social e que não possuíam direito previdenciário. Assim, a Seguridade Social tinha uma lacuna de exclusão representada pelos trabalhadores informais e desempregados sem acesso integral aos benefícios. Sob este aspecto, o conceito de universalidade não se verificava. Por outro lado, a Saúde sob o comando do SUS, e a Assistência Social sob o comando do SUAS (Sistema Único de Assistência Social), dois dos três eixos do tripé da Seguridade Social, eram acessíveis à totalidade dos brasileiros, independente de contribuição, e assim continua até hoje.
O SUS é uma grande vitória daqueles que sempre lutaram por um Brasil mais justo para todos.
Apesar desta grande vitória da reforma sanitária, é importante atentarmos para o grande contingente de 36,8 milhões de trabalhadores sem previdência (em 2019) que poderiam engrossar o caixa do INSS. Quanto mais o INSS arrecadar, maior a cobertura e melhor a qualidade do serviço. Portanto, é preciso que o Brasil volte a ter políticas econômicas com maior sensibilidade social, que coloque o pobre no orçamento e invista mais em micro e pequenas empresas, agricultura familiar, cooperativas, programas assistenciais de distribuição de renda, e finalmente, mas não menos importante, uma nova política de reindustrialização nacional, revertendo o sucateamento iniciado em 2016 após o Golpe de Estado contra a Presidente Dilma Rousseff (2011 - 2016) sob o falso pretexto de "pedaladas fiscais" que resultou em impeachment (31/08/ 2016).
O modelo de gestão implementado no Brasil após o impeachment de Dilma Rousseff impulsionou uma política econômica quase que exclusivamente agrária (agronegócio), ambientalmente predatória, com inúmeros cortes no orçamento da saúde, endossada por um judiciário disfuncional e partidariamente politizado, liderado pelo então juiz de primeira instância Sergio Moro, que escondia atrás de sua toga interesses políticos e golpistas que levaram em 2018 à prisão por 580 dias, sem provas, do maior líder popular da América Latina, o Presidente Lula (2003 - 2011), vencedor das eleições presidenciais de 2022. No ano de sua prisão (07/04/2018), Lula estava muito a frente nas pesquisas presidenciais, com possibilidade real de vencer no primeiro turno. Com a sua prisão, o então juiz Sérgio Moro foi recompensado como o cargo de Ministro da Justiça no governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), evidenciando o caráter golpista de sua conduta que lhe valeu o título juiz parcial. O quadro descrito levou Brasil a um grande índice de desemprego de quase 13% verificado no mesmo ano das eleições.
Quanto mais trabalhadores com carteira assinada maior o nível de contribuição. Quanto maior a contribuição menor o déficit previdenciário que, em 2020, beirava a 20 bilhões, resultado da diferença entre a arrecadação líquida e o valor gasto com o pagamento de milhões de benefícios.
O modelo de Seguridade Social brasileiro está sedimentado em uma aliança política nacional onde cada brasileiro capaz de contribuir com o INSS no presente, é beneficiado com a contribuição das novas gerações no futuro. Trata-se de um pacto entre gerações que transcende o tempo.
O SUS, como um subsistema da Seguridade Social, destina-se a todos os cidadãos. Do seu fundo de investimento saem os recursos destinados aos governos Federal, Estadual e Municipal. Este formato resulta de seu caráter sistêmico, organizado em redes regionalizadas hierárquicas. Assim, se faz importante entender que a competência de cuidar da saúde deve ser dos três entes federativos, de forma igual e independente do domicílio do segurado.
O conceito de saúde elaborado na VIII Conferência Nacional de Saúde foi incorporado pelo SUS permitindo que as ações de saúde fossem vistas como um conjunto complexo de atos sanitários interligados, calcados no entendimento de saúde como um conceito global que não permite fracionamento (Santos, 2017).
A Atenção Primária à Saúde (APS) é o modelo que predomina neste tipo de política e corresponde ao primeiro nível ou o momento em que se inicia o processo de atenção em um sistema de saúde. No SUS, a APS surge como uma estratégia fundamental, tornando-se o principal e o primeiro ponto de contato entre as pessoas e os serviços de saúde. É chamado de porta de entrada do SUS. Este nível de atenção fornece uma atendimento integral e aborda a maioria das demandas de saúde da população de forma longitudinal (ao longo do curso de vida). A APS está voltada para responder de forma regionalizada, contínua e sistematizada, a maior parte das necessidades de saúde de uma população, integrando ações dos tipos:
- Preventivas,
- Curativas,
- Coletivas (atenção a indivíduos e comunidades).
No Brasil, a APS incorpora os princípios da Reforma Sanitária e é designada pelo SUS como Atenção Básica à Saúde (ABS), para enfatizar a reorientação do modelo assistencial a partir de um sistema universal e integrado de atenção à saúde.
O SUS brasileiro adotou o modelo inglês de Atenção Primária à Saúde com base no Relatório Dawnson (1920). A atenção primária à saúde é uma forma de organização criada em contraponto ao modelo americano de cunho curativo, fundado no reducionismo biológico e na atenção individual. A proposta principal do modelo Inglês é a de hierarquização de níveis de atenção à saúde com a seguinte organização:
- Centros de saúde primários e secundários.
- Serviços domiciliares.
- Serviços suplementares e hospitais de ensino.
Os centros de saúde primários e os serviços domiciliares devem estar organizados de forma regionalizada, e a maior parte dos problemas de saúde devem ser resolvidos por médicos com formação em clínica geral. Os casos em que o médico não tiver condições de solucionar o problema com os recursos disponíveis, devem ser encaminhados para os centros de atenção secundária, onde estão lotados especialistas das mais diversas áreas, ou então para os hospitais de referência quando houver indicação de internação ou cirurgia.
Com base neste modelo, o SUS se organizou de acordo com os seguintes modos hierárquicos:
- Baixa Complexidade.
- Média Complexidade.
- Alta Complexidade.
O nível 1 (Baixa Complexidade) corresponde ao nível de atenção primária ou básica à saúde, encontrado nas Unidades de Saúde de baixa complexidade.
O nível 2 (Média Complexidade), corresponde ao nível de atenção secundária à saúde e pode ser encontrado em hospitais secundários ou ambulatórios de especialidade de média complexidade.
O nível 3 (Alta Complexidade), corresponde ao nível de atenção terciária à saúde e pode ser encontrado em hospitais terciários de alta complexidade.
O nível de Baixa Complexidade é porta de entrada do sistema. O paciente é conduzido aos demais níveis de acordo com a complexidade do seu caso. Entretanto, alguns sanitaristas questionam o conceito de hierarquia no SUS no que se refere ao grau de importância de um determinado nível de atenção. Eles entendem que os níveis hierárquicos devem referir à progressão do paciente no sistema com base no grau de complexidade de sua doença. Se não for assim, parecerá que o nível de atenção básica à saúde é de menor importância. Entretanto, a ABS corresponde ao primeiro contato do paciente com o sistema de saúde por ser a porta de entrada do SUS e como tal, dela dependerá, na maioria das vezes, a progressão nos diversos níveis de atenção de acordo com o nível de complexidade patológica do paciente.
No Brasil, a principal estratégia de configuração da ABS é o programa Saúde da Família, que tem recebido importantes incentivos financeiros visando à ampliação da cobertura populacional. A estratégia Saúde da Família aprofunda os processos de territorialização e de responsabilidade sanitária das equipes de saúde, compostas basicamente por médico generalista, enfermeiro, técnico de enfermagem, psicólogo, fisioterapeuta, odontólogo, educador físico e agente comunitário de saúde, cujo trabalho é referência de cuidado para a população, com um número definido de domicílios e famílias assistidas por equipe.
O Ministério da Saúde, em setembro de 2005, definiu a Agenda de Compromisso pela Saúde que agrega três eixos:
- Pacto em Defesa do Sistema Único de Saúde (SUS).
- Pacto em Defesa da Vida.
- Pacto de Gestão.
Agora, cabe a cada cidadão consciente, agente do seu próprio saber, se utilizar das ferramentas aqui disponibilizadas para aprofundamento acerca de Políticas Públicas de Saúde e reformulação de novos saberes. Lembre-se de que não podemos perder de vista a importância do salto civilizatório que foi a criação do SUS em um país tão carente de cuidado e acolhimento. Todos nós, profissionais de saúde e futuros profissionais, temos o dever de conhecer a nossa principal política de saúde: o SUS.
Na prática
Ao iniciar uma carreira como profissional de saúde em uma unidade de saúde pública, a alocação do profissional dependerá de sua qualificação. O profissional poderá trabalhar na atenção básica, secundária ou terciária, de acordo com os níveis hierárquicos do SUS. Portanto, na atenção básica encontram-se os generalistas, aqueles que atuarão na emergência, na clínica geral, na prevenção ou reabilitação. De um modo geral são constituídos por médicos, psicólogos, fisioterapeutas, enfermeiros, odontólogos, educadores físicos, técnicos de enfermagem e agentes de saúde. Por outro lado, se você intencionar trabalhar na atenção secundária ou terciária, será necessário algum grau de especialização em alguma área, tais como oncologia, cardiologia, neurocirurgia, etc. Nestes casos, os pacientes serão encaminhados da atenção básica para os municípios onde se encontram os centros de referência que permitem tratamentos de pacientes de alta complexidade dentro dos seus territórios de saúde.
Resumo da Unidade 4
Na década de 1970, o Brasil vivia uma ditadura militar cruel e sanguinária por conta de sua fase mais dura relacionada ao Ato Institucional 5 (AI5), decretado pelo regime em 1968. A saúde refletia a instabilidade política e jurídica de um sistema disruptivo caracterizado por reformas que sempre ocorriam no bojo de interesses populistas de legitimação de governos autoritários intermináveis. Neste período ocorreu o “Massacre de Manguinhos”, quando dez dos nossos melhores cientistas foram cassados por perseguição política, gerando enormes prejuízos para a ciência brasileira. Em 1986, ocorreu a VIII Conferência Nacional de Saúde, expressão máxima da Reforma Sanitária e marco na história do SUS na luta contra o autoritarismo pela democracia. Em 1988 o SUS foi aprovado na nova Constituição Federal consolidando um modelo de prestação de serviço baseado na descentralização e no conceito de rede hierarquizada e regionalizada. O sistema viabilizou o acesso gratuito e igualitário aos serviços para a promoção, proteção, recuperação e reabilitação dos indivíduos.
Fim.
Bibliografia:
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Midiateca
Mídia 1
Democracia é saúde: Pronunciamento do sanitarista Sergio Arouca durante a 8ª Conferência Nacional em Saúde
Descrição/Sinopse da mídia:
O Sanitarista Sérgio Arouca discursa sobre a importância da reforma sanitária e sobre o conceito de saúde elaborado na VIII Conferência Nacional de Saúde.
Fonte da mídia:
Mídia 2
Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS)
Descrição/Sinopse da mídia:
Histórico das Políticas Públicas de Saúde até a nova república.
Fonte da mídia:
Mídia 3
O SUS em 2020.
Descrição/Sinopse da mídia:
Debate elaborado sobre o SUS em 2020 no contexto da pandemia de Covid-19.
Fonte da mídia: